Quando os mortos abrem os olhos aos vivos

A luso-francesa Cristèle Alves Meira regressa a Cannes para apresentar<em> Alma Viva</em>, o seu primeiro trabalho de formato longo - é, para já, um dos grandes acontecimentos da programação da Semana da Crítica.
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Em Cannes, a boa notícia desta quarta-feira é a revelação de Alma Viva, filme integrado na programação da Semana da Crítica. Para a realizadora, a luso-francesa Cristèle Alves Meira, o festival não é uma novidade: as suas curtas-metragens Campo de Víboras (2016) e Invisível Herói (2019) estiveram na Côte d"Azur (também na Semana da Crítica); esta estreia na longa-metragem, com produção de Pedro Borges, confirma as sedutoras singularidades de um universo que foi sendo consolidado através dos trabalhos anteriores.

Em 2017, Cristèle Alves Meira tinha já o projeto de Alma Viva. Por essa altura esteve em Ovar, numa sessão do circuito internacional Shortcutz, para apresentar duas curtas: Sol Branco (2015) e Campo de Víboras. Entrevistei-a nesse contexto e creio que vale a pena recordar esta mini-biografia: "Sinto o complexo de alguém que não tem um só país. Nasci em França, filha de pais portugueses, do Norte do país. Tenho dupla nacionalidade, já que pedi a nacionalidade francesa aos 18 anos. Sinto-me francesa, é verdade, mas em casa recebi uma cultura portuguesa. Ao mesmo tempo, quando venho a Portugal, é como se não me sentisse portuguesa: vivo uma espécie de crise identitária que traz as memórias dos tempos de infância que passei com a minha família transmontana."

Trás-os-Montes é, justamente, o cenário para uma história cuja pedra de toque é a infância. Seguimos a pequena Salomé, em férias com a família que vive em França, subitamente abalada pela morte da avó; metódica observadora das convulsões daquele microcosmos social, Salomé vê a tragédia familiar como resultado de elementos de bruxaria, envolvendo-se numa teia de interrogações e revelações capaz de pôr à prova a sua tocante vulnerabilidade - e também a energia que dela emana.

Alma Viva nada tem que ver com esse misto de paternalismo, caricatura e futebol que, não poucas vezes, serve para encenar as vidas dos emigrantes portugueses em França. Aliás, seria, no mínimo, disparatado descrever o delicado trabalho narrativo de Cristèle Alves Meira como uma "tese" sobre a emigração. O motor dramático do filme é a tensão que se estabelece entre o olhar de Salomé - interpretada por Lua Michel, filha da realizadora, um prodígio de naturalidade face ao olho clínico da câmara, alheio a qualquer simplismo naturalista - e o estranho mundo dos adultos, perdidos entre a crueza da tradição e as arbitrariedades do mundo "moderno" povoado de ecrãs.

Como é dito a certa altura, "os vivos fecham os olhos aos mortos e os mortos abrem os olhos aos vivos". Não se trata, entenda-se, de misticismo de talk show televisivo, antes do reconhecimento de que a exuberante natureza que envolve a ação (magnífica direção fotográfica de Rui Poças) não tem, afinal, nada de natural, acolhendo sempre as ilusões e fantasmas dos humanos. As almas estão tão vivas quanto os corpos.

dnot@dn.pt

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