Quando o vírus ataca uma família em três continentes

Covid atingiu ao mesmo tempo três familiares em Lisboa, Luanda e Califórnia. Videochamadas ajudaram a combater a doença e confinamentos desde Londres a Moscovo, com vida e morte pelo meio.
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Três membros da mesma família a viver em três continentes contraíram o vírus mais odiado do século exatamente na mesma semana, sem que tenham mantido contacto entre eles. No dia 30 de setembro de 2020, Sandra, 29 anos, estava a ser internada com uma pneumonia numa clínica privada em Luanda. Cláudia, 35, preparava-se para um isolamento de dez dias em Sacramento, Califórnia. E em Cascais, Agostinho, 83 anos, tio-avô de ambas, começava a sentir os primeiros sintomas que haveriam de confirmar, a 4 de outubro, o teste positivo à covid-19.

O capricho do destino que levou o agente infeccioso a escolher esta família como alvo para disseminar a sua influência geoestratégica, de uma só vez, em Portugal, Angola e Estados Unidos permanecerá um mistério. Mas, por sorte ou genética, os seus intentos não foram bem-sucedidos. Todos recuperaram ao fim de cerca de dez dias sem contaminações em massa.

Se a genética jogou aqui algum papel, não sabemos. O apoio da família através das redes sociais e das videochamadas acabou por se revelar um tratamento eficaz, garantem os sobreviventes à covid e aos penosos confinamentos desta família luso-angolana com embaixadores em Lisboa, Luanda, Sacramento, Londres, Bruxelas e Moscovo. "Ainda não temos um representante na Antártida, temos de tratar disso", parodiava um elemento da família.

Agostinho não tem uma explicação para que, aos 83 anos, tenha desafiado as probabilidades, sem necessidade de cuidados hospitalares, ao contrário da sua saudável sobrinha-neta. Mas acredita que se o pensamento positivo é determinante, talvez também o tenha ajudado nesta batalha, pois que é conhecido por ter uma calma de monge budista. "No início sentia apenas um grande cansaço e moleza. Quando fui fazer o teste ao Centro de Congressos do Estoril, estava convencido de que ia dar negativo." Quando o resultado positivo chegou por e-mail confessa que ficou surpreendido e precisou de um tempo para digerir. Nem disse logo à filha, para não lhe estragar o dia de aniversário. Mas, apesar de em outubro as TV já pintarem a toda a hora um cenário dantesco de mortes, o octogenário nascido em 1937 em Marco de Canaveses e apaixonado por Angola, onde cumpriu serviço militar e constituiu família, nunca pensou no pior. "Não entrei em pânico, até porque nunca dei muita importância às doenças, não sou hipocondríaco como o Marcelo", ironiza.

"Acreditei mesmo que isto ia passar. Manter-me saudável é a minha grande preocupação, porque se eu avariar é o fim da picada aqui em casa." E não está a brincar. É cuidador a tempo inteiro da mulher, Glória, de 82 anos, com alzheimer avançado e que escapou "miraculosamente" do vírus, vivendo na mesma casa e "sem que nunca tenha sido indicada pelas autoridades de saúde para ser testada", nem nenhum dos contactos próximos de Agostinho.

Houve dias duros de profunda letargia, tosse incapacitante e preocupação. Só ao fim do décimo dia começaram a surgir sinais mais claros de recuperação. Foi nessa altura que Agostinho deu a sua primeira gargalhada em mais de duas semanas. O culpado foi o sobrinho Carlos Figueiredo, 60 anos, pai de Sandra, que numa videochamada a partir de Luanda, enquanto a filha recuperava, lhe conseguiu transmitir o carinho que sentia por ele, através de um desarmante sentido de humor, disfarçando a "aflição por se encontrar longe e impotente para ajudar", confessa o consultor e diretor para Angola da African Innovation Foundation.

"Para mim foi muito importante sentir o apoio da família, dos sobrinhos que ligavam de diferentes pontos do mundo e me mandavam mensagens encorajadoras no Facebook", diz o homem de fibra que, para manter a saúde mental na espécie de confinamento em que já vive desde antes da pandemia, faz questão de manter rituais diários como andar a pé, cozinhar, ler, tocar piano e ouvir música clássica na sua nova smart TV alternando com os vídeos do Bonga e da Carmen Miranda que coloca no YouTube para a sua mulher dançar, num mundo em que a fantasia do lado de lá do ecrã e a realidade são já uma e a mesma coisa.

Quando Sandra Figueiredo, sobrinha-neta de Agostinho, soube que estava infetada, entrou imediatamente em isolamento durante sete dias na sua casa em Luanda e transferiu os dois filhos pequenos para casa dos avós. "Tive muitas dores de cabeça e no corpo, tosse, mas depois recuperei dois dias e ao terceiro dia voltei a ter muita tosse, o que levou a médica a pedir uma TAC aos pulmões, conta a diretora-geral de uma consultora de comunicação em marketing digital, licenciada em Direito pela Católica Lisbon. Foi então que se descobriu uma lesão pulmonar que obrigou a um internamento hospitalar. "Admito que aí tive medo. Fui para um hospital de campanha, mas não cheguei a ir para os cuidados intensivos." Depois de medicada, Sandra não teve complicações, embora não tenha ainda recuperado o olfato. Para além da experiência inesquecível de ver a morte de perto, o período mais complicado a nível emocional acabou por ser a quarentena de mais sete dias, após a alta, isolada num quarto de hotel à espera de um resultado negativo. "Foram as chamadas de WhatsApp da família que me salvaram", diz, admitindo ter agora uma consciência sobre a doença que "no início talvez desvalorizasse um pouco".

Apesar de em Angola nunca ter vigorado um confinamento à europeia e grande parte da população levar uma vida quase normal, pois é alta a percentagem a viver da economia paralela, a irmã de Sandra, Tchissola, de 21 anos, leva a taça de resistência a confinamentos solitários. A estudar Medicina em Moscovo com uma bolsa de estudo do governo russo, viu-se já envolvida em dois confinamentos forçados, num total superior a cinco semanas, sem nunca ter testado positivo. O primeiro foi em início de março de 2020, quando, após regressar de um fim de semana em Londres, a Inglaterra entrou em lockdown e as autoridades russas a foram buscar à residência universitária e lhe deram 20 minutos para arrumar as coisas e entrar numa violenta quarentena de três semanas num quarto de hotel, do qual só saiu a 4 de abril. "Foi horrível", conta. "Graças a Deus levei a minha guitarra, que para além das aulas online e das videochamadas com a família e os amigos era a única forma de sair daquele pesadelo."

Quando finalmente Tchissola sai do confinamento encontra uma Moscovo completamente diferente, com autocarros vazios e gente de máscara. Pouco tempo depois, as aulas presenciais são interrompidas e é repatriada para Angola num voo do governo, onde continua com aulas online sem poder ainda regressar. Ao aterrar em Luanda, onde na altura só havia 16 casos covid registados, foi levada para nova quarentena de dez dias num hotel. "Fiquei num quarto sem janela, onde só havia luz natural num corredor e a polícia ficava lá fora para garantir que ninguém saía." Tudo se complicou quando, depois testados os passageiros do voo, 30 deram positivo, levando as autoridades a agravar a quarentena de dez para 21 dias. "Aí comecei a dar em doida", confessa. E nem as visitas regulares de um psicólogo fizeram milagres. As chamadas diárias com a família eram o único consolo para uma clara sensação de depressão, confessa.

Calejada em confinamentos está também Inês, a artista da família, (prima de Sandra e de Tchissola, sobrinha de Carlos e sobrinha-neta de Agostinho), que enfrenta já o terceiro confinamento total em Inglaterra, sendo este o mais longo e restrito. Saiu há nove anos de Palmela para estudar World Performance na East 15 Acting School, em Essex, a 50 quilómetros de Londres. Apesar de só contar 26 anos, não só é um prodígio de versatilidade no canto, composição musical, interpretação ao piano, dança ou representação como herdou o gene empreendedor do pai. Mal acabou o curso tornou-se empresária, cria e produz os seus próprios espetáculos e concorre a subsídios do Arts Council England, que aloca verbas dos jogos sociais para apoiar a cultura. Tal como os artistas em geral, quase não fez espetáculos durante a pandemia, mas recebe um subsídio do Estado no valor de 80% da média de rendimentos dos últimos três anos, a que soma aulas de canto online. "Não sou dos que estão pior, mas entristece-me ver colegas a tornarem-se motoristas e voltarem para casa dos pais para conseguirem sobreviver", diz Inês Sampaio, para quem a pandemia chegou na pior hora possível para a sua carreira internacional. "Ia para o Japão e para a Roménia, com boas companhias, e foi tudo cancelado. De tudo, foi o que me custou mais."

Do outro lado do canal, em Bruxelas, a prima Kathleen, portuguesa de 38 anos (filha de mãe luso-angolana e pai francês), também já teve a sua dose de confinamentos, sendo a Bélgica dos países europeus com mais mortes por cem mil habitantes. "No primeiro confinamento, o teletrabalho até me fez desfrutar um pouco melhor o tempo com as minhas filhas, mas agora já não suporto mesmo a falta de liberdade", admite a consultora em assuntos europeus que, apesar de tudo, se mostrava contente por, pela primeira vez desde outubro, ter podido ir a um cabeleireiro. "Uma das coisas que mais me custou foi não poder acompanhar o meu marido ao funeral do meu sogro, em Kinshasa, Congo, pelas restrições de circulação." O marido acabaria por ficar contaminado durante a estada e, embora assintomático, teve de aguardar por um teste negativo para poder regressar, a 21 de fevereiro.

Do outro lado do mundo, junto ao Pacífico, Alberto (Betinho para a família) apanhou um susto com a contaminação da filha Cláudia em outubro, mas desde então a vida segue mais ou menos normal, mesmo que os Estados Unidos já tenham ultrapassado a barreira dos 500 mil mortos por covid, e continua a ter trabalho no setor da construção civil. "Aqui em Sacramento [Califórnia] está tudo aberto, restaurantes incluídos, e a máscara só é obrigatória em locais públicos. Este setor também sofreu, mas aqui vai sempre havendo trabalho para quem quer trabalhar", resume Alberto, 58 anos, que emigrou dos Açores para os Estados Unidos, vindo de Angola, há quase 30 anos, e já tem dois netos norte-americanos.

No ano negro da pandemia não faltou drama na família, mas também houve notícias felizes, como o nascimento, em Portugal, do neto mais novo de Carlos, que ainda quase ninguém conhece, graças aos sucessivos confinamentos. Mas, segundo as fotos no grupo de WhatsApp "Família Adams", o Isac é lindo. Como é lindo o amor com que a artista Inês Sampaio Figueiredo cantou, dançou e se vestiu de Carmen Miranda num vídeo que gravou especialmente para a sua tia-avó Glória, no dia do seu 82.º aniversário, até hoje convencida de que a sua adorada cantora lhe deu realmente os parabéns. E, afinal, não estamos todos a viver numa realidade paralela?

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