Quando o divórcio leva ao crime de falsificação para ficar com o cão

Separação de casal, residente no Alentejo, levou a disputa pelo animal. Mulher foi condenada a multa de 1440 euros por usar documento falsificado para mudar o registo do animal.
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O cão entrou na vida do casal, que vivia numa herdade do Alentejo, por acaso. Apareceu por ali após alguém o atirar por cima da cerca. Foi acolhido, tratado e registado em nome do homem. Depois veio o divórcio e os litígios, na ordem das dezenas. O cão foi um deles e acabou por chegar a tribunal com a mulher a ser condenada por falsificação de documento por ter colocado a assinatura do ex-marido numa declaração de cedência que usou para mudar o registo do animal para o seu nome.

O casal de holandeses manteve o matrimónio entre 2008 e maio de 2014. Viviam na herdade alentejana quando em 2013 o cão, o Shogun, um boxer tigrado que entrou na sua vida ao ser ali abandonado por desconhecidos.

Foi registado no Sistema de Identificação e Recuperação Animal (SIRA), recebendo o chip, e ficando registado em nome do homem.

O divórcio trouxe uma série de conflitos entre o casal que, segundo o acórdão do Tribunal da Relação de Évora que confirma condenação por falsificação, originou dezenas de processos judiciais, muitos deles ainda em curso. Na contestação, a holandesa informou ser titular de contas bancárias com saldo aproximado de dois milhões de euros, as quais refere não conseguir movimentar.

A mulher, gestora de profissão, decidiu, de acordo com a sentença do juízo de competência genérica de Montemor-o-Novo, mudar o registo do cão para o seu nome. Para o fazer, em 2014, sem o conhecimento do antigo companheiro, usou uma fotocópia de uma declaração de cedência supostamente assinada pelo homem para se apresentar numa clínica veterinária e solicitar a alteração do registo do cão. O que foi alcançado após a clínica informar o SIRA. Mas quando o ex-companheiro deu conta, a situação mudou. O novo registo acabou por ser anulado mas o caso foi para a justiça.

Apesar do tribunal não ter conseguido apurar quem fez a referida falsificação, deu como provado que a mulher fez uso dela e prejudicou o ex-marido. "De forma não concretamente apurada, a arguida entrou na posse da cópia extraída da declaração de cedência (...), bem sabendo que tal assinatura não tinha sido aposta pelo punho daquele", diz a sentença. Acabou condenada por um crime de falsificação na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 12 euros, no montante global de 1440 euros.

Não se conformou com esta condenação e recorreu para a Relação de Évora.

A motivação deste recurso consistiu em alegar que apenas entregou uma fotocópia da declaração de cedência e não um documento original. Além disso, apontava que "ao requerer o registo do canídeo em seu nome não pretendeu obter nenhum benefício ilegítimo". Por isso, pretendia a absolvição por considerar que não se verificou o crime de falsificação.

Fotocópia ou não, é crime de falsificação

Os juízes-desembargadores não atenderam e negaram provimento ao recurso. "Sendo aceite fotocópia como prova da existência e conteúdo do original, a exibição ou entrega de fotocópia de documento que a arguida sabia ter sido falsificado, constitui uma das modalidades do crime de uso de documento falsificado", lê-se no sumário da decisão datada de dia 7 de maio passado.

"O documento a que o presente processo se atém constitui uma cópia de um formulário - isto é, a declaração de cedência - em que foi aposta uma montagem da assinatura do assistente, sendo a cópia, em si própria, o objeto e o meio da falsificação. Na verdade, mediante a cópia em referência unificou-se, por um lado, uma formulário de declaração de cedência de um canídeo e, por outro, o extrato de um documento contendo a assinatura do assistente, produzindo-se, dessa forma, uma aparência de documento por via do qual o assistente cedia o mencionado animal à arguida", diz o acórdão em que os juízes concluem que a mulher atuou com dolo.

O facto de registo ter sido revertido meses depois não muda nada. "É ainda de considerar que a circunstância de a arguida se considerar como cuidadora do canídeo supramencionado não exclui a ilicitude e, por outro lado, a circunstância do registo em apreço ter sido revertido igualmente não interfere com a consumação do crime em apreço, pois que o benefício ilegítimo (e concomitante prejuízo para o assistente) foi obtido pela arguida no imediato momento em que procedeu (ou seja, utilizou) o documento a que se tem aludido na clínica veterinária", refere o acórdão.

Neste processo, o homem, também holandês e agora a residir no Algarve, avançou com acusação particular, que parcialmente não foi atendida já que dizia que a falsificação foi concretizada pela ex-mulher mas o tribunal não considerou isso provado. Mas ganhou a causa principal. O registo do cão voltou à forma original mas o acórdão do tribunal não esclarece onde está agora Shogun e ao cuidado de quem, já que este processo se refere apenas à falsificação do documento e não à sua guarda.

Em Portugal, já houve vários casos de disputa de animais de companhia por casais em separação. Houve mesmo acordos em que a guarda partilhada, 15 dias em casa de cada cônjuge por exemplo, foi a solução. Com a alteração legislativa, em 2017, em que os animais deixaram de ser coisas, os animais de companhia passaram a ser levados em conta nas separações. Se houver divórcio por mútuo acordo, é necessário entregar o acordo escrito sobre o destino a dar aos animais. Se for litigioso, será um juiz a decidir, se houver disputa, quem fica com os animais.

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