Quando o crime organizado se organiza para ajudar, amor não é certamente
Quem viu a trilogia O Padrinho, de Francis Ford Coppola, e se lembra da forma como a personagem encarnada por Marlon Brando e Robert de Niro ajudava a viúva desempregada ou atendia ao pedido do cangalheiro que lhe chegava, humilde e de chapéu na mão, a solicitar um favor, comportando-se como um pai castigador mas justo e magnânimo e certificando assim o seu domínio, não poderá surpreender-se com as notícias que chegam de Itália e Brasil, onde as máfias assumem protagonismo no contexto da pandemia, surgindo como protetoras e salvadoras.
"Queremos o melhor para a população. Se o governo não tem capacidade de dar um jeito, o crime organizado resolve". Esta mensagem paradigmática correu mundo no final de março, atribuída às máfias que controlam favelas no Rio de Janeiro. Teria sido transmitida a essas populações via redes sociais, impondo, após ser diagnosticada a primeira infeção num morador da Cidade de Deus, recolher obrigatório e ameaçando: "Toque de recolher a partir de hoje 20h00. Quem for visto na rua após este horário vai aprender a respeitar o próximo!"
E agora que foram confirmadas, esta quinta-feira, as primeiras mortes por Covid nas favelas do Rio - duas na Rocinha, outras duas na de Vigário Geral, uma em Manguinhos e uma na favela da Maré (quatro homens e duas mulheres, sendo que a vítima mais jovem tinha 48 anos) - o governo brasileiro viu-se obrigado a negociar com os grupos armados para que seja possível intervenção das equipas de saúde nesses territórios em que vivem 1,5 milhões de pessoas.
"Temos que entender a cultura, a dinâmica [das favelas]. Que esses são lugares onde o estado geralmente está ausente, que quem manda lá é o narcotraficante, que quem manda lá é o miliciano ", afirmou, em conferência de imprensa, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. O governante frisou até que os "narcos" [narcotraficantes) e os líderes das milícias armadas também são "seres humanos" e estão "ansiosos para colaborar, ajudar, participar do combate a doença."
Para além das condições deficientes de higiene - em muitos locais não há água canalizada - e do facto de as habitações e arruamentos terem dificilmente condições para assegurar o mínimo de afastamento social, muitos dos moradores das favelas trabalham ao negro, ou no chamado "setor informal", estando assim praticamente privados de rendimentos com o fechamento da economia e as ordens de quarentena. Só esta quinta-feira o governo libertou o pagamento de 600 reais (cerca de 107 euros) a esses trabalhadores, enquanto várias organizações se estão a mobilizar-se para distribuir alimentos e produtos de primeira necessidade naqueles territórios.
Também em Itália, um dos países mais afetados pela pandemia, somando já 18849 mortos e aquele que deu o nome à máfia, as organizações criminosas estão a querer surgir como salvadoras nas zonas onde têm mais poder, o sul do país, distribuindo comida aos carenciados.
Nos últimos dias, a polícia de Nápoles tem intensificado a sua presença nas zonas mais pobres da cidade, onde homens ligados à Camorra, a máfia local, organizaram a entrega de alimentos. Já correm inquéritos judiciais a essa atividade, enquanto em Palermo (capital da Sicília) segundo o jornal La Reppublica , o irmão de um chefe da Cosa Nostra (a máfia siciliana) terá estado a distribuir comida aos pobres do bairro de Zen. Quando a notícia surgiu, o homem defendeu-se no Facebook, alegando estar apenas a fazer caridade e atacando o jornalista que primeiro reportou o caso.
Mas não se trata só de distribuir comida. "Não há crise que não seja uma oportunidade para as máfias. Os clãs vão aproveitar o estado de emergência para devorar a economia", afirmou a 6 de abril, em entrevista ao mesmo jornal o procurador nacional antimáfia, Federico Cafiero de Raho. Confessando-se "muito preocupado", diz que as máfias vão oferecer empréstimos aos negócios em dificuldades e depois tomar conta deles, usando-os para lavar dinheiro.
Nicola Gratteri, investigador antimáfia à frente do gabinete do Ministério Público da comuna de Catanzaro, na Calábria, ouvido pelo jornal britânico Guardian, corrobora: "Há mais de um mês que cafés, restaurantes e bares estão fechados. Milhões de pessoas na zona trabalham ao negro, o que significa que não receberam dinheiro durante esse tempo e não têm ideia nenhuma de quando poderão voltar a receber. O governo está a criar vouchers para que as pessoas possam adquirir alimentos. Mas se não vem depressa em socorro destas famílias, a máfia fá-lo-á, impondo o seu controlo sobre elas."
"Os chefes da máfia consideram as suas cidades como feudos", prossegue Gratteri. "Sabem muito bem que para manterem o poder têm de cuidar das populações, e fazem-no explorando as situações em seu benefício. Aos olhos das pessoas, um chefe mafioso que bate à porta a oferecer comida é um herói. E ele sabe que pode depois contar com o apoio dessas pessoas quando por exemplo quer eleger um político que sirva os seus interesses."
Pode até acontecer, como foi o caso de Pablo Escobar na Colômbia, que um mafioso queira ser ele próprio o político eleito (o que ocorreu em 1982). Ao longo da sua carreira de imperador da cocaína, Escobar, que chegou a ser considerado o homem mais rico do mundo, construiu casas para os pobres e distribuiu dinheiro pela população, surgindo como um benemérito e conquistando tal popularidade que apesar dos muitos crimes de sangue de que foi acusado o seu funeral atraiu mais de 25 mil pessoas.
Outro caso, lembrado pelo procurador Gratteri, é o de El Chapo, o chefe mafioso mexicano: foi responsável por centenas de mortes mas na sua terra é louvado pela benevolência e benemerência, porque as pessoas dizem que "ajudava", dando dinheiro, fornecendo medicamentos e construindo estradas.
Esta forma de agir é de facto um clássico das máfias, explica o criminologista Federico Varese, professor na universidade de Oxford, também citado pelo Guardian. "Não se trata apenas de organizações criminais. Aspiram a governar territórios e mercados. Geralmente ficamo-nos nos aspetos financeiros da sua atividade e tendemos a esquecer que a sua força funda-se no facto de terem uma base local, a partir da qual operam."
Ou seja, são organizações políticas, que visam alargar o seu poder. "A máfia não faz nada por bondade", frisa Varese. "As suas ofertas, se aceites, serão pagas de uma forma ou outra: ajudando alguém procurado pela justiça, escondendo um arma, vendendo droga..."