"Quando fiz 50 anos fui fazer as Torres del Paine, na Patagónia. Isso é que eu gosto, a aventura, a caminhada"
Estamos sentados na agradável esplanada do pátio do Hotel Corinthia, em Lisboa, mas ambos concordamos que o sítio ideal para este brunch seria o café Naderi, no coração de Teerão, onde se pode beber um chá ou um café enquanto se olha para o painel onde velhas fotografias mostram clientes famosos, como Abbas Kiarostami, que morreu faz agora cinco anos mas deixou um impressionante legado de filmes. Sim, Teerão, porque foi numa visita ao Irão, em finais de 2017, que conheci Eugénio Fernandes, então administrador da euroAtlantic Airways e hoje seu CEO.
A companhia aérea portuguesa, fundada por Tomaz Metello, tinha então autorização para ligar Lisboa à capital iraniana, mas era preciso acelerar o ritmo de atribuição de vistos. Um grupo de jornalistas portugueses foi convidado a acompanhar as negociações e a descobrir um pouco da antiga Pérsia, com uma ida também a Isfaão, e a mim coube-me representar o DN, mesmo que a minha carreira no jornalismo internacional destoasse da experiência da maioria dos meus colegas de viagem, que trabalhavam para revistas especializadas em turismo. O café Naderi foi uma ideia de Sépideh Radfar, professora universitária iraniana que vive em Lisboa e que nos serviu de guia, uma guia de luxo.
Já com um prato de queijos à frente, também uns ovos estrelados acompanhados por bacon, e ainda um sumo de laranja natural, recordo uma frase de Eugénio que incluí na reportagem intitulada "90 horas no Irão: beldades persas, bazares e Carlos Koorosh". Dizia-me ele então, no momento em que mostrávamos os passaportes, que "o Irão é um país de gente acolhedora, que nada tem que ver com aquilo que se diz". Não era a primeira visita, longe disso, afinal viajar faz parte da vida do CEO da euroAtlantic e muito, muito antes sequer de entrar para a empresa.
"Andei de avião pela primeira vez com 2 meses. Para vir a Portugal ser mostrado à família que cá vivia", sublinha este natural de Lourenço Marques, hoje Maputo, capital desse Moçambique independente desde 1975. Eugénio nasceu na ainda colónia portuguesa em 1969 e diz ser moçambicano de terceira geração, pois o avô paterno já nasceu em África. "Foi um bisavô meu, açoriano, que era farmacêutico, o primeiro a chegar. Veio com a mulher, Alice, também farmacêutica. Ele, que já tinha experiência de viver em África, na Guiné, abriu no norte de Moçambique, na Beira, a primeira farmácia da cidade. A Farmácia Alice."
Moçambique era a terra da família e nessa terra a família investiu tudo. Do lado da família materna, destaca, havia alguma riqueza, o grupo A. Teixeira, que incluía hotéis. Com a descolonização perderam tudo e Eugénio, graças à distância no tempo, hoje já brinca com a situação: "Costumo dizer que nasci rico, mas aos 5 anos era pobre." Foi com essa idade que veio para Portugal, onde ficou pouco mais de um ano, pois a seguir o destino da família Fernandes foi o Brasil.
"O meu pai tinha pouco mais de 40 anos na época. Era militar de carreira, mas reformou-se como tenente-coronel. Teve de começar uma segunda vida no Brasil. Construir a partir do quase nada. Por isso tenho uma admiração brutal por ele. A minha mãe já faleceu, mas o meu pai, aos 89 anos, continua bem. Está lúcido e ativo", diz.
A família começou por se instalar na Varginha, em Minas Gerais, depois no Rio de Janeiro, onde Eugénio estudou na escola primária Dr. Cícero Penna, na Avenida Atlântica. Mas a aventura brasileira teve o apogeu em Manaus, na Amazónia, só que aí Eugénio participou apenas nas férias escolares, pois aos 10 anos veio para Lisboa para o Colégio Militar. E por vontade própria, explica, enquanto pedimos um segundo sumo de laranja. O bufete de pequeno-almoço do Corinthia é excelente, está aberto mesmo aos não hóspedes, mas, por causa da pandemia, são os funcionários do hotel que vão buscar os pedidos dos clientes e isso faz perder um pouco a graça, apesar de ser compreensível para minimizar os riscos da covid-19.
"Em 1979, já estava a estudar no Brasil há três anos, vim a Portugal passar férias com a minha avó paterna e assisti ao desfile do Colégio Militar na Avenida da Liberdade, em Lisboa, pois os meus primos eram alunos. Quando regresso ao Rio de Janeiro, em conversas com o meu pai, ele próprio um ex-aluno, e por ter ficado completamente empolgado com o que vi, pedi para vir estudar para o Colégio Militar. Os meus pais ficaram brancos, durante cinco minutos calados, e o meu pai só me disse que me ia deixar vir para um dia mais tarde não lhe dizer que não fiz algo na vida porque ele não me deixou. O meu pai, talvez como homem, mais frio, teve pena, mas compreendeu o meu desejo, mas para a minha mãe, naquela altura, foi o fim do Brasil para ela, ela é que sofreu muito com esta decisão do menino de 10 anos", conta o CEO da euroAtlantic.
"A passagem pelo Colégio Militar foi decisiva no moldar da minha personalidade. Muito do que eu sou hoje vem do que aprendi com o meu pai, militar de carreira, e isso era um sacerdócio para ele, e o seu exemplo moldou muita a minha formação. E depois, naturalmente, fui moldado pelo período que estive no Colégio Militar, dos 10 aos 18 anos, absorvendo os valores, da moral e do código de honra. É um pilar da minha vida", acrescenta.
Ainda com a família na Amazónia, onde o pai se tornara representante dos óleos Castro, Eugénio entrou para a universidade em Lisboa, formando-se em Economia pela Católica. Sempre com espírito aventureiro, que as idas a Manaus reforçavam, foi numas férias a Londres para trabalhar, noutras a Toronto, mas aí não conseguiu que lhe dessem emprego por causa das leis canadianas. "Fui uma vez também de bicicleta com uns amigos até Marrocos. A pedalar de Lisboa até Ceuta e depois ficámos uma semana num Club Med marroquino", relembra, com um sorriso que denuncia estar a falar de belas memórias.
Casou-se em 1994 e teve duas filhas, Adriana, com 22 anos, e Daniela, com 20. Os olhos brilham quando fala das filhas, uma quase médica, a outra a caminho de formar-se em Direito. Conta que Adriana fez um estágio em Omsk, na Sibéria, e que foi com Daniela até lá para conhecer aquela parte da Rússia. Digo-lhe que um dia estive perto de Omsk - se considerarmos 700 quilómetros perto - quando visitei Semei, no Cazaquistão. O rio Irtixe liga as cidades.
Sobre a relação com as filhas, Eugénio, que se casou entretanto segunda vez, diz: "A relação com Adriana e Daniela é excelente. Naturalmente os filhos são diferentes, com uns damo-nos melhor numas áreas e com outros noutras. Sou pai galinha, mas escondido. Não estou sempre em cima, mas como pai preocupo-me bastante. Contudo, dou-lhes a máxima liberdade para a máxima responsabilidade, como o meu pai fez comigo, quando aos 10 anos me deixou vir para o Colégio Militar."
Hotéis que a família chegou a ter em Moçambique, estreia de avião aos 2 meses, três países como casa antes dos 10 anos, espírito aventureiro, tudo parecia encaminhar Eugénio para uma vida a culminar no mundo do turismo ou das viagens. E de certo modo assim foi. Começou a vida profissional na Alitália, na parte financeira, depois trabalhou para o Grupo José de Mello em Angola (na área dos estaleiros navais), de seguida a construção civil em Portugal, regresso a Moçambique agora ligado a uma companhia aérea e desde 2005 quadro da euroAtlantic, na qual, em 2018, assumiu as funções de CEO, uma decisão do fundador da empresa, Tomaz Metello, empresário com quem, diz, "aprendi muito".
Chegam os cafés à nossa mesa. A euroAtlantic Airways tem, entretanto, novos acionistas, o germano-libanês Abed El Jaouni e o grupo inglês Njord Partners, mas Eugénio recebeu novo voto de confiança e é como CEO que enfrentou a chegada da pandemia, duro golpe na área da aviação a nível mundial, ao ponto de a TAP estar em dificuldades e não ser caso isolado. Pergunto como lidou a euroAtlantic com o impacto da covid-19, empresa que ganhou fama a transportar tropas para o Afeganistão e peregrinos para Meca e a ir a Timor buscar 200 portugueses quando mais nenhuma companhia arriscava aterrar em Díli, como aconteceu em abril de 2020. Na altura entrevistei Mário Alvim, piloto veterano da euroAtlantic, que resumiu a chegada do Boeing 767 a Díli assim: "Quando em Timor viram um avião português foi um alívio, um aconchego." Foi o título.
"A euroAtlantic esteve sempre num nicho de mercado de fazer coisas diferentes, não estando nos voos regulares, tirando agora a Guiné-Bissau e a parceria com a STP, a companhia são-tomense. Muitos anos sim, a voar peregrinos para Meca, a partir dos destinos mais exóticos que possamos imaginar. Onde há uma oportunidade de negócio nós vamos. Levámos, por exemplo, médicos cubanos para Katmandu quando foi o grande terramoto no Nepal. Íamos a voar quando houve uma réplica e tivemos uma decisão difícil de manter a aterragem ou não. Isto é muito a euroAtlantic, fazer coisas inopinadas, claro sempre dentro dos padrões de segurança. Temos pilotos muito experientes. Sem desvalorizar ninguém, uma coisa é um piloto voar para destinos que conhece e outra é de um dia para o outro dizerem que tens de descolar para Cartum e ser a tua primeira vez nesse aeroporto. Temos de ter tripulações muito experientes", diz Eugénio.
Quanto ao impacto económico da covid-19, o CEO explica: "Com a pandemia tivemos de fazer coisas que não são agradáveis. Tivemos de reduzir frota, tivemos de tirar aquelas gorduras que deixamos crescer em tempos bons, renegociámos tudo o que havia a renegociar desde o parafuso até ao avião, tivemos também as ajudas que foram transversais à economia, o lay-off, e de resto tivemos de nos aguentar. Tivemos uma quebra de receita de 70% e tivemos de reduzir custos na mesma ordem de grandeza. Realmente um desafio gigante, nunca esperei ter de passar por isto."
Otimista sobre a recuperação do negócio das viagens aéreas, Eugénio comenta que a operadora do grupo, a Sonhando, tem tido agora "grande sucesso" num programa para Porto Santo, o que significa que as pessoas querem voltar a viajar, mas para já não para muito longe de casa. "Demorará mais a recuperar o ritmo dos voos de longa distância", nota.
O próprio CEO da euroAtlantic não deixou de voar nunca. "Estive há 15 dias em São Tomé e há um mês na Índia. E no verão passado, quando a STP voltou a voar de Portugal para São Tomé e Príncipe, não só fui de férias como, coisa que não costumo fazer, pus uma fotografia no Facebook, pois acho importante incentivar a viajar desde que as condições de segurança estejam garantidas, o que era o caso."
Despedimo-nos. Eugénio já conhece mais de 70 países. Eu fico ainda um pouco aquém, apesar do jornalismo também ser propício àqueles, como eu, que adoram viajar. Mas nunca estive 200 dias consecutivos fora, sempre de um lado para o outro a viajar, como já aconteceu ao CEO da euroAtlantic noutros tempos. E não posso deixar de concluir este brunch com um pormenor da conversa que me surpreendeu: a paixão pelas caminhadas. E das grandes. "O que hoje em dia gosto de fazer é caminhada . Quando fiz 50 anos fui com os meus dois melhores amigos fazer as Torres del Paine, na Patagónia. Isso é que eu gosto, a aventura, a caminhada. É o desafio do desconhecido."
leonidio.ferreira@dn.pt