Quando Deus dá poder para o crime

O número três do Vaticano está acusado de abuso sexual na Austrália, o número dois é suspeito de encobrimento num processo em França, no Chile há rusgas ao bispado e o relatório da Pensilvânia choca o mundo. Mais de 20 anos após os primeiros escândalos de abuso sexual de menores terem abalado a Igreja Católica, a dimensão do crime e do seu encobrimento continua a surpreender. Há redenção possível para uma organização que propicia tais horrores?
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"Uma desculpa é pior do que uma mentira, porque uma desculpa é uma mentira cautelosa." A frase é de João Paulo II, o Papa em cujo final de reinado rebentou o escândalo do abuso sexual de menores na Igreja Católica. Mas dois papas, vários pedidos de perdão, juras de transparência e de respeito pelas vítimas depois, chegámos aqui, à semana em que no mesmo dia - terça 14 de agosto - nos EUA se divulgava um documento choque expondo sete décadas de abuso sexual de menores por sacerdotes no estado da Pensilvânia, com 301 acusados, mais de mil vítimas e pormenores que de tão escabrosos parecem mentira, enquanto no Chile a polícia fazia rusgas na Conferência Episcopal no âmbito de uma investigação sobre o mesmo tipo de crimes, preparando-se para interrogar, no dia 21, por suspeita de encobrimento, o cardeal e arcebispo de Santiago do Chile, Ricardo Ezzati.

"É atordoador. Saber que são décadas e décadas deste horror e que não houve consequências. Como diz o relatório da Pensilvânia, a gente achava que eram coisas que aconteciam aqui e ali, longe de nós, mas aconteceram em todo o lado. Estou esmagado com tudo isto, com o ritmo alucinante a que isto está a revelar-se, com a perversidade demoníaca do que se revela. Padres que violam crianças com crucifixos, que formam quadrilhas de abusadores, com práticas sádicas..." É um padre português que fala, a voz a fazer eco do tormento das palavras. Pede para não ser identificado; aceita a contragosto que a conversa seja reproduzida. "Isto tem que ver com coisas muito velhas, muito antigas. Esta tolerância absoluta com estas práticas, o encobrimento, e o olhar tenebroso sobre as questões da sexualidade... E a Igreja sempre a pensar em si e para si, sem nunca se preocupar com as vítimas. O Papa Francisco fala muito disso, da autorreferencialidade da Igreja." Suspira. "O descrédito na hierarquia da Igreja nestes países, no Chile, por exemplo, em que acho que as coisas ainda estão piores do que nos EUA, é total. As pessoas não confiam. Não sei como vai ele [o Papa] descalçar esta bota. Mas tenho de dizer que na minha opinião é bom isto estar a acontecer, a vir para a luz. É o momento do bisturi sobre o abcesso. O problema é o abcesso. O mal é o que sucedeu antes."

Números 2 e 3 do Vaticano em causa

É um enorme abcesso. Tão grande que se pode perguntar se é um abcesso realmente. Vejamos: a 28 de julho, o Papa aceitara a resignação do cardeal americano Theodore McCarrick, antigo arcebispo de Washington e Newark que tem pendentes acusações de abuso sexual de um adolescente de 16 anos nos anos 1970, quando era padre em Nova Iorque. Sabe-se agora que há queixas de "comportamento inadequado" do ex-cardeal desde 1994, quando um padre escreveu a um bispo denunciando McCarrick por "tê-lo tocado de forma imprópria". Este tipo de denúncias, que em 2005 e 2007 determinaram o pagamento de indemnizações por duas dioceses americanas a dois padres que acusavam McCarrick do mesmo, terá chegado aos papas: João Paulo II teria sido avisado antes de o ordenar arcebispo de Washington e em 2008 Bento XVI recebeu uma carta falando das "atividades" do arcebispo. Agora, a Conferência Episcopal Americana, numa posição conhecida na quinta-feira, dois dias após a divulgação do relatório da Pensilvânia, pede ao Vaticano que lance uma investigação especial às alegações de abuso sexual contra McCarrick e "mudanças práticas para evitar a repetição dos pecados e falhas do passado".

Uma investigação lançada pelo Vaticano? A Congregação da Doutrina da Fé (CDF), o ministério com a tutela das questões doutrinais, ao qual o Papa João Paulo II entregou em 2001 (quando Ratzinger a liderava) a condução dos casos de abuso sexual, é dirigida pelo cardeal Luis Francisco Ladaria Ferrer. Ferrer, número dois do governo papal, vai ser inquirido no julgamento do cardeal francês Philippe Barbarin, que decorrerá em janeiro de 2019. Barbarin é acusado de encobrimento de abusos sexuais; Ferrer é suspeito de ter também participado no encobrimento.

Quanto ao número três do Vaticano, o cardeal George Pell, de 76 anos, com a pasta das finanças no governo papal, foi em abril formalmente acusado de agressões sexuais a menores e seminaristas entre 1979 e 1990. Pell, cujo julgamento também deverá ocorrer em 2019, já fora acusado de encobrimento, em 2016, durante as audições da Comissão Real que investigou durante cinco anos o abuso sexual de crianças nas instituições australianas e cujo relatório, tornado público em 2017, revela que, entre 1950 e 2010, 7% dos sacerdotes da IC foram acusados de abuso sexual. Dispensado pelo Vaticano das suas funções por um ano, para proceder à sua defesa, afirma-se inocente e mantém-se cardeal.

Outro alto prelado australiano, o arcebispo Phillip Wilson, resignou em julho após ser condenado, em maio, a um ano de prisão domiciliária por nunca ter reportado às autoridades o repetido abuso sexual de dois rapazes por um padre, nos anos 1970. Wilson, que recorreu da sentença e resistiu a pedir a demissão, sendo a isso obrigado pelo clamor público e a pressão do governo australiano, é até agora o mais alto membro da hierarquia católica a ser condenado por encobrimento.

Também na Austrália, um ancião australiano com cancro terminal acordou na quinta-feira numa indemnização de mais de 600 mil euros por abuso sexual em orfanatos de uma ordem religiosa católica em 1950-60. Os três monges acusados morreram sem terem enfrentado qualquer penalização, mas Paul Bradshaw, 74 anos, que várias vezes se queixou dos abusos sem que lhe dessem crédito e chegou mesmo a ser internado num hospital psiquiátrico devido a essas tentativas de denúncia, é a primeira vítima a beneficiar da recente alteração das leis que impunham um limite de tempo (prescrição) para os processos por abuso sexual de menores. A alteração das normas de prescrição nos casos de abuso sexual era, precisamente, uma das propostas do relatório ao abuso sexual nas instituições australianas apresentado em 2017; é-o também no relatório da Pensilvânia, no qual se lamenta que de todos os casos narrados só em dois - o de um padre que ejaculou na boca de uma criança de 7 anos e de outro que molestou dois rapazes durante um período largo de tempo, até 2010 - seja possível avançar para a acusação, já que todos os outros estão prescritos.

Desculpas públicas, resistências privadas

Há Francisco, claro. O homem que tantos creem ter chegado à Cúria Romana, após a inusitada resignação do antecessor, em 2013, determinado a uma limpeza total, a não hesitar perante nada para que a instituição reencontre os valores essenciais, iniciou o seu reinado aceitando, logo no primeiro mês, a resignação do cardeal escocês Keith O'Brien, suspeito de "comportamento impróprio" com padres. No ano seguinte, o núncio apostólico para República Dominicana, Josef Wesolowski, acusado de recorrer à prostituição de menores, foi julgado pela CDF e condenado à "laicização", ou seja, expulso da Igreja - a mais grave sanção da lei canónica. Morreu em 2015, em detenção domiciliária, no Vaticano.

Porém, também Francisco foi apanhado em falso este ano, numa visita ao Chile, em janeiro, quando defendeu o bispo Juan Barros das acusações de encobrimento dos abusos sexuais cometidos pelo padre Fernando Karradima (dado como culpado pela própria IC, num processo terminado em 2015), considerando-as "calúnias". Perante a indignação dos chilenos, o pontífice terá, de regresso a Roma, procurado informar-se melhor. Em resultado, chamou todos os 34 bispos do país ao Vaticano; acusados pelo Papa (de acordo com o que transpirou para a imprensa) de se terem abstido de investigar abusos reportados e destruído provas, apresentaram a demissão em bloco. Só cinco das resignações foram aceites, porém.

E se Francisco criou, logo em 2013, uma Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores, presidida pelo bispo de Boston, Sean O'Malley, a principal proposta da comissão - que na CDF funcione um tribunal para julgar altos prelados suspeitos de encobrimento e outros crimes relacionados com abuso sexual - nunca avançou, apesar de ter sido publicamente aceite pelo Papa e anunciada em 2015. A comissão perdeu aliás, simbolicamente, os dois representantes das vítimas: o primeiro a sair foi Peter Saunders, em 2016, dispensado pelo Vaticano, supõe-se que devido aos sinais públicos de impaciência que dava. Em declarações posteriores aos jornalistas, disse ter tornado claro que não estava disposto a participar "num mero exercício de relações públicas. (...) Não vejo nada a mexer, não vejo ação nenhuma num assunto em que devia estar toda a gente furiosa".

Saunders, abusado por dois padres quando adolescente, revelou também que tinha chegado à comissão notícia de um caso recente em que dois padres italianos haviam denunciado um colega ao bispo por abuso sexual de menores e o prelado lhes dissera para ficarem calados. "Isto parte-me o coração, e tristemente continua a acontecer no mundo inteiro." Em 2017 foi a vez de a irlandesa Marie Collins bater com a porta. O motivo próximo, explicou, foi dar-se conta de o Vaticano não estar a cumprir a norma de que toda a correspondência enviada por vítimas e sobreviventes tinha de ter resposta. "Considero impossível continuar a ouvir declarações públicas sobre a preocupação profunda que a igreja sente em relação aos cujas vidas foram destruídas pelo abuso e em privado perceber que no Vaticano nem sequer se dão ao trabalho de tomar conhecimento das suas cartas. É muito esclarecedor sobre a forma como toda esta crise na Igreja tem sido tratada: com belas declarações públicas e ações contrárias dentro de casa."

Desde a sua entrada na comissão, em 2014, Collins, que foi abusada por um padre aos 13, tinha várias vezes chamado a atenção para a falta de financiamento, de pessoal (não podem contratar fora da Igreja) e de poder da mesma. Confessando nunca ter tido a oportunidade de falar com o Papa, a irlandesa afirmou já não ter esperança de que as coisas mudem.

Abuso e encobrimento "endémicos"

Foi há 16 anos que o jornal Boston Globe, num conjunto de investigações que forçaram o arcebispo de Boston, Bernard Law, a resignar, revelou o padrão, ao expor uma série de casos de abuso sexual na diocese de Boston e a forma como a hierarquia os encobrira. Os culpados eram mantidos ao serviço, mudados de paróquia em paróquia sem nunca avisar as comunidades e muito menos as autoridades, não dando sequer às vítimas o conforto de lhes reconhecer razão. A vitimização sexual de crianças por membros da IC era "generalizada" e conhecida pela hierarquia, concluía, num relatório de 2003, o gabinete do procurador-geral de Boston, cuja diocese, uma das mais ricas do país, ficou na penúria devido às indemnizações pagas às vítimas (outras se seguiram: em 2007, a diocese de Los Angeles acordaria pagar 660 milhões de dólares a 500 acusadores; o seu arcebispo, Roger Mahony, foi demitido do cargo em 2013 por encobrimento).

Todas as investigações subsequentes, nos EUA, Irlanda, Austrália, etc., são consistentes com o revelado em Boston. E com a ideia de que, sendo óbvio que o abuso sexual de menores não é um exclusivo da Igreja Católica, há uma prevalência suficientemente importante de casos (reportados, porque, como frisa o relatório da Pensilvânia, serão muitos os que nunca foram sequer denunciados) para considerar que a instituição propicia o crime, ou seja, que a teoria das "maçãs podres" não explica o fenómeno.

Nos EUA, logo em 2004, uma revisão de todos os casos de abuso sexual atribuídos a membros da IC entre 1950 e 2002 apurou que tinha havido acusações contra 4% dos sacerdotes ativos à época, sendo 10 667 os menores afetados. Outro estudo concluiu que 72% das acusações tinham sido investigadas, com apenas 3% a resultar em condenações, enquanto 37% dos padres eram enviados para "tratamento".

Na Irlanda - onde em 1994 o caso de um padre abusador cujos crimes haviam sido escamoteados pelas autoridades religiosas e civis fez cair o governo -, várias investigações, divulgadas a partir de 2009, revelaram aquilo que foi qualificado como um padrão de abuso "endémico" e, claro, encoberto. Na Holanda, um relatório de 2011 revelou que "dezenas de milhares de crianças" teriam sido abusadas no seio da IC entre 1945 e 2010, com 800 autores identificados. Na Austrália, como já citado, entre 1950 e 2010 7% dos sacerdotes da IC foram acusados de abuso sexual.

Numa revisão, publicada em 2013, de todos trabalhos científicos sobre o abuso sexual no contexto da IC, um grupo de investigadores da Universidade de Ludwig-Maximilians (Munique) cita análises forenses a várias amostras de padres abusadores que concluíram que apenas uma minoria padeceria de pedofilia (atração sexual por crianças) ou efebofilia (atração por adolescentes) e que a idade média aquando do primeiro crime era bastante elevada - 38,91 anos, o que tende a contradizer a parafilia como motivação. Já a percentagem de religiosos com história de abuso que foram considerados sexualmente e emocionalmente imaturos é bastante elevada: 42,3%.

As análises efetuadas tendem assim a considerar que o fator "oportunidade" e as circunstâncias institucionais serão preponderantes para o abuso por parte dos membros da Igreja, havendo cientistas que fazem uma analogia entre a subcultura das corporações policiais e a da Igreja Católica, encontrando várias semelhanças: "Ambas as posições, a de padre e a de polícia, comungam da autoridade, da confiança do público, isolamento, ausência de supervisão, mobilidade profissional limitada, e uma subcultura de secretismo, espírito de corpo, tendência para a manutenção do statu quo."

Proteger os suspeitos de abuso policial é, creem os polícias (e as polícias), proteger a instituição; na IC, o mesmo se aplica quanto aos suspeitos de abuso sexual. Esta proteção incluía, reporta o documento da Pensilvânia, aquilo que o FBI, chamado a examinar o modus operandi eclesiástico, identificou como "livro de estilo" na condução dos "casos". Nunca se falava, nos registos escritos, de violação nem de abuso, sendo usadas expressões mais suaves, "brancas", como "contacto inapropriado"; para inquirir de uma denúncia eram escolhidos padres sem qualquer experiência na condução de inquéritos de abuso sexual; se um padre acusado era retirado de um posto nunca se informava a comunidade das razões desse afastamento. E certamente nunca se informavam as autoridades policiais ou judiciais - quando muito mandavam-nos para centros da Igreja para serem "avaliados".

Abusar invocando Deus

Outro fator fundamental na etiologia do abuso é o poder. Num estudo de 2011, baseado em narrativas de vítimas, conclui-se que os padres usam situações de dependência e isolamento - por exemplo, a confissão - "para intimidar a vítima, por exemplo sugerindo que a denúncia do abuso poderá resultar em danação eterna ou enfatizando a relação do padre com Deus". A perceção do seu papel social em relação com a vítima pode, consideram os investigadores, contribuir para a existência do abuso. E, prosseguem, se estas relações de poder são propiciadas por várias profissões, "perpetradores num contexto religioso tendem a explorar, para os seus objetivos, o caráter simbólico específico de rituais como a confissão, assim como a sua autoridade moral".

A aceitação do abuso pela instituição e o falhanço da liderança são também considerados fatores-chave para explicar a prevalência do crime. Curiosamente, não há nesta revisão de estudos menção de um fator que intuitivamente muitos considerarão como importante: a imposição do celibato, cujo fim o relatório australiano de 2017 defende nas suas propostas.

Diz o relatório/acusação do Grande Júri da Pensilvânia: "Já houve relatórios sobre abusos sexuais na Igreja. Mas nunca nesta escala." É certo que é grande - 1400 páginas - e arrasador: um padre que abusa de uma menina de 7 anos que está no hospital por causa de uma operação às amígdalas; outro que vitimiza cinco irmãs, a mais nova das quais com 18 meses; o grupo de sacerdotes que pede a um adolescente que se dispa para "fazer de Cristo" e tira fotos; violações brutais de crianças e adolescentes; o crime do padre Amaro de um clérigo que engravida uma jovem e a convence a abortar, recebendo do seu bispo, de tudo informado, uma carta de conforto.

Mas o mais terrível é que nada do que nos diz este relatório é novo; que estes crimes, a maioria dos quais haviam sido de alguma forma comunicados às autoridades eclesiásticas, que os mantiveram em segredo, ecoam outros de que fomos sabendo ao longo dos anos; que a atitude da hierarquia é a mesma, que o encobrimento e o silenciamento são a regra. E que, se grande parte dos abusos reportados ocorreram há décadas, o que possibilita o conforto de crer que nos tempos mais recentes a prevalência baixou, a instituição Igreja Católica fez muito pouco ou nada para enfrentar o que se passou, possibilitar às vítimas o reconhecimento do seu sofrimento, do mal que lhes fez.

Nada pode apagar o mal feito. Mas, como escrevia anteontem no The New York Times a historiadora Kathleen Sprows Cummings, sob o título "Para os católicos, a reforma gradual já não é uma opção", não se percebe que tanto desse mal continue escondido, protegido, negando aos que o sofreram o conforto do reconhecimento. Porque só há um motivo plausível para que o que o relatório da Pensilvânia revela ter permanecido até agora na escuridão: o medo da luz. O encobrimento dos pecados. A proteção dos criminosos e de quem os acoitou. A IC, diz Cummings, deveria abrir os seus arquivos a advogados, procuradores, historiadores, "para que a verdade toda, por mais horrível e danosa, seja conhecida". Até que isso suceda, tudo são desculpas. Ou, como disse João Paulo II, mentiras disfarçadas.

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