Quando Coppola voou "demasiado alto": Apocalypse Now
Nas páginas de um livro recentemente publicado entre nós - O Cinema ao Vivo e as suas Técnicas - Francis Ford Coppola, o autor, recorda a imprudência criativa por detrás do objeto de culto que é hoje Apocalypse Now: "Foi a experiência mais assustadora e aterradora por que passei, tanto no plano artístico quanto financeiro. Era claro para mim que tinha voado demasiado alto e que me tinha aproximado demasiado do Sol, como Ícaro, e era apenas uma questão de tempo, de meses ou de anos, até à grande queda final."
O filme que lhe valeu a Palma de Ouro, aterrando na competição do 32º Festival de Cannes sob o rótulo "work in progress", depois de mais de três anos em produção, foi de facto um empreendimento digno de roubar a alma aos homens que nele trabalharam. Filmado na selva das Filipinas, que se transfigurou no palco da guerra do Vietname, Apocalypse Now absorveu todos os excessos e tormentos que fizeram parte do projeto e da rodagem, desde o milhão de dólares (por semana) exigido por Marlon Brando para encarnar o homem-deus Kurtz à tempestade que se abateu sobre os cenários, e obrigou à sua reconstrução, passando pela crise cardíaca do protagonista Martin Sheen. Veja-se a figura do próprio Coppola no momento em que aparece brevemente no filme como um tresloucado repórter televisivo a gritar para os soldados não olharem para a câmara... Era este o espírito.
A versão que agora chega às salas portuguesas - depois de uma sessão especial no Grande Auditório do CCB, em outubro - é a terceira e definitiva de uma obra que nunca largou a pele do seu realizador. Em termos de duração, fica entre o original de 1979 (com 153 minutos) e o Redux lançado em 2001 (com 202 minutos), esse que estendeu o lado humano do episódio à volta do tenente-coronel de Robert Duval ("I love the smell of napalm in the morning"), prolongou a sequência das Coelhinhas da Playboy, acrescentou outra que funciona como a página francesa neste conto alucinado sobre os horrores da guerra e, sobretudo, expôs mais do que o recomendado o vulto pesado de Brando/Kurtz à luz do dia. Apocalypse Now - Final Cut, por sua vez, com 183 minutos, volta a encurtar a sequência das Coelhinhas da Playboy e a eliminar, precisamente, os momentos em que Kurtz saía da densidade da escuridão, quebrando ligeiramente o feitiço da sua presença sagrada, entre a extrema lucidez e uma loucura vinda das profundezas da alma. Sempre a alma.
Com este limar de arestas ou sem ele, Apocalypse Now continua a ser o mais avassalador dos filmes de guerra, que expõe a violência quase num regime de cinema de atrações, tratando uma viagem interior como matéria filosófica paredes meias com a carne sangrenta. Desde o início, com aquele inesquecível som das hélices dos helicópteros e a música The End dos The Doors em malha de fundo, até ao ritualístico final, a angustiada subida do rio pelo capitão Willard/Sheen, para ir ao encontro do coronel Kurtz e matar este desertor que se recolheu no "coração das trevas" do Camboja, o esplendor de um dos mais intensos pesadelos americanos mantém-se, banhado num realismo de insanidade romântica, roubada a Joseph Conrad.
O grande detalhe desta versão será, definitivamente, o restauro em 4k. Apocalypse Now tornou-se uma experiência ainda mais física e imersiva, com a reforçada banda de som a puxar-nos para dentro de uma selva que, como diz o capitão Willard na voz off que narra a mítica descida aos infernos, cheira "a morte lenta, malária e pesadelos".
Inês N. Lourenço
***** Excecional