Quando a geopolítica se sente até em casa
Com Richard Quest, estrela da CNN, como moderador da sessão de abertura, o Fórum Internacional de Astana de 8 e 9 de junho deixou bem evidente a ambição do Cazaquistão em ver reconhecido um papel central nas ligações entre o Oriente e o Ocidente, até entre o Norte e o Sul, como o próprio presidente Kassym Jomart-Tokayev sublinhou no discurso inaugural, em que defendeu o multilateralismo, também a paz, o progresso e a solidariedade, e reafirmou a vocação anti-nuclear do país, que há três décadas desistiu do seu arsenal herdado da URSS. Estamos a falar do maior país encravado do mundo, situado no coração da Eurásia, que é umas 30 vezes maior do que Portugal mas tem apenas 20 milhões de habitantes, e que procura reafirmar a independência perante a velha influência da Rússia e a nova influência da também vizinha China.
Para a mais de uma centena de jornalistas vindos de todo o mundo para compreender a geopolítica do Cazaquistão, ainda mais complicada desde que a Rússia invadiu a Ucrânia em 2022, talvez o momento mais esclarecedor tenha ocorrido na véspera do início do Fórum, nas palavras do vice-ministro dos Negócios Estrangeiros durante um encontro no edifício do ministério, na ultramoderna Astana. Perante insistentes perguntas sobre a relação atual com a Rússia, o impacto das sanções a Moscovo na economia cazaque, se o Cazaquistão está preocupado com a hipótese de guerra nuclear, Roman Vassilenko deu um vivo testemunho que pareceu vir tanto do governante como do cidadão. Falou das consequências "económicas, geopolíticas e domésticas" da guerra que dura desde fevereiro de 2022 entre os dois países que, tal como o Cazaquistão, partilharam um destino comum até à desagregação da URSS em 1991. "Domestic", dito em inglês, poderia ser traduzido por "internas", "consequências internas", mas o outro sentido de doméstico em português, o que diz respeito à casa ou à família, assenta na perfeição àquilo que Vassilenko quis dizer. O vice-ministro contou em traços gerais a história do último século no Cazaquistão, estepe que ficou sob influência do Império Czarista há cerca de 250 anos: um país muçulmano, de língua túrquica, que na sequência da Revolução Bolchevique perdeu um a dois milhões de pessoas por causa da fome causada pelas experiências sociais comunistas numa população nómada, mas que tem hoje "130 grupos étnicos" por o seu território ter sido usado por Estaline para o desterro de povos suspeitos de colaboração com o inimigo (caso dos chechenos, dos alemães do Volga, dos coreanos e muitos outros), com muita gente a sobreviver "porque a hospitalidade dos cazaques lhes ofereceu do pouco pão que ainda tinham"; além de local de exílio, o território cazaque também serviu para ensaios nucleares que causaram uma tragédia no nordeste do país; depois, nos anos 1950, já com Kruschev no poder no Kremlin, russos, ucranianos e bielorrussos, vieram para a campanha de cultivo das chamadas terras virgens. Astana, antiga Tselinograd, era a capital das terras virgens, e só em 1997 substituiu Almaty como capital do moderno Cazaquistão.
Vassilenko falou também da diplomacia multivectorial, lançada por Nursultan Nazarbayev, o pai da independência, e reforçada por Tokayev, que procura proximidade com os EUA e a UE (sobretudo esta, garantiu-me o ex-presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, aqui presente), para equilibrar a relação com a Rússia e a China. Essa vontade de não ter diferendos com nenhum país e manter boas relações com todos, poderia explicar quase só por si a posição complexa de Astana em relação à guerra da Ucrânia: apoio à integridade territorial do país invadido (é uma mensagem dupla a Moscovo), mas abstenção na hora de se condenar os invasores na ONU; ainda absoluto cuidado em não deixar que o seu território seja usado pela Rússia para contornar algumas das sanções económicas impostas pelo Ocidente. Mas há a tal questão doméstica. A sensibilidade de uma população que conta com mais de três milhões de russos étnicos e 300 mil ucranianos, todos eles eslavos, com muitos casamentos mistos ao longo dos anos, muitas famílias em que os antepassados russos e ucranianos se confundem, partilhando memória de sofrimentos mas também de sucessos comuns. Há um ano, numa visita a Lisboa, o vice-ministro tinha já alertado, em entrevista ao DN, para esse impacto mais pessoal da guerra: "Há 3,5 milhões de pessoas de etnia russa no Cazaquistão que são cidadãos cazaques, mas também há 300 mil de etnia ucraniana que também são cidadãos cazaques e todos têm familiares na Rússia e na Ucrânia. Portanto, isto significa que este conflito é verdadeiramente doloroso".
Não admira, pois, que apesar da diversidade de temas do Fórum Internacional de Astana, como a energia ou a inteligência artificial, os desafios geopolíticos que enfrenta hoje o mundo, e em especial esta parte do mundo, tenham sido omnipresentes. Para quem pensa que o Cazaquistão é demasiado longe, ou demasiado periférico, olhe para um mapa-múndi, para a centralidade de uma nação rica em petróleo e urânio, ou então pense que foi num recanto do país, o polígono de Semipalatinsk, que em 1949 a URSS testou a sua primeira bomba atómica, atingindo o equilíbrio estratégico com os EUA e fazendo com que os 40 anos de Guerra Fria nunca aquecessem mesmo, por causa da mútua dissuasão nuclear entre as duas superpotências.
Diretor adjunto do Diário de Notícias