Pyongyang troca ameaça nuclear por progresso económico
A menos de uma semana da cimeira entre as duas Coreias, a realizar-se em Panmunjon, na zona desmilitarizada fronteira comum, o líder do regime de Pyongyang declarou o fim de "todos os ensaios nucleares e do lançamento de mísseis balísticos intercontinentais", considerando "estar confirmado o carácter operacional destas armas".
O anúncio foi feito ontem pela agência oficial KCNA, citando palavras de Kim Jong-un proferidas na véspera perante o comité central do Partido dos Trabalhadores da Coreia (no poder em Pyongyang) e assiná-la uma significativa mudança face a declarações do regime norte-coreano até finais de 2017. A viragem ocorreu no discurso de Ano Novo de Kim, em que este se apresentou disposto ao diálogo com a Coreia do Sul e abriu caminho à participação do seu país nos Jogos Olímpicos de Inverno em Pyeongchang, realizados em fevereiro no sul. O que veio a suceder. Na imediata sequência dos Jogos, nos quais estiveram presente o vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, e a filha do presidente Donald Trump, Ivanka, Kim sugeriu a realização de uma cimeira com o dirigente americano.
À multiplicação de ensaios de mísseis balísticos e de testes nucleares, Pyongyang passa a ter nova postura, que vai traduzir-se pelo anúncio de uma terceira cimeira entre os dirigentes das duas Coreias, hoje, respetivamente, Kim Jong-un e Moon Jae-in, com a novidade de não decorrer em Pyongyang como as de 2000 e 2007 mas na zona desmilitarizada, no próximo dia 27. Noutro desenvolvimento relevante, no final da semana foi anunciada a criação de uma linha telefónica direta entre Moon e Kim - a primeira vez que nível de comunicação é estabelecida entre presidentes. Até agora, existiam cerca de 30 linhas de telefone ou de fax a nível militar e de controlo do espaço aéreo, indicava na sexta-feira a Bloomberg.
Outro sinal de que o dirigente norte-coreano parece apostar na redução das tensões regionais vem da informação de que serão encerradas as instalações de Punggye-ri, onde decorreram os seis ensaios nucleares até hoje realizados pela Coreia do Norte e o anúncio de que Pyongyang quer concentrar-se "no progresso económico do país".
Para fonte diplomática norte-coreana, ontem citada na CNN, "a prioridade" de Kim é "o desenvolvimento da economia nacional" e o "progresso económico". Para a mesma fonte, o cenário da normalização de relações com outros Estados e o reconhecimento da comunidade internacional seria o objetivo histórico do representante da terceira geração da família Kim, no poder em Pyongyang.
Com uma economia sujeita a sanções internacionais e dependendo de mercados paralelos e subterfúgios para se equipar na maioria dos setores, a Coreia do Norte é um país em declínio, até no plano demográfico. As estimativas mais elevadas colocam-no com 25 milhões de habitantes enquanto no sul a população ultrapassa os 50 milhões. Noutro plano, a não divulgação de estatísticas mascara o atraso de um país que, na década de 60 do século XX, apresentava um nível de desenvolvimento comparável ao do sul. Hoje, o fosso é enorme, tendo atravessado graves crises de fome e de baixa produção agrícola na década de 1990. Desde esta época até 2009, dependeu fortemente da ajuda humanitária internacional.
Durante as primeiras etapas da preparação da cimeira intercoreana, o dirigente do norte revelara a uma delegação do sul que "compreendia" a necessidade de manobras militares conjuntas das forças de Seul e de Washington e, mais recentemente, dissociara o processo de desnuclearização da península de uma prévia retirada americana. Os EUA mantêm cerca de 27 mil efetivos e importantes meios militares na Coreia do Sul e na região desde o fim da Guerra da Coreia (1950-53), que terminou apenas com um armistício. Tecnicamente, as duas Coreias estão ainda em guerra e passos para uma possível solução desta questão na cimeira Moon-Kim servirão para aferir das reais intenções do líder norte-coreano. A notícia do fim dos ensaios e de testes de mísseis foi saudada de forma quase unânime, a começar por Trump, que a classificou como "muito boa para a Coreia do Norte e para o mundo. Estou ansioso pela nossa cimeira", escreveu no Twitter. Está em preparação uma cimeira - inédita - entre um presidente americano e um dirigente máximo norte-coreano, e Trump colocara como condição prévia a suspensão dos ensaios nucleares e de tiros de mísseis para a sua concretização. A cimeira deverá ocorrer em junho.
Do lado da presidência sul-coreana, a notícia foi também vista como "um progresso significativo para a desnuclearização da península".
"Abandono total" do nuclear
A reação mais prudente veio do Japão, onde o primeiro-ministro Shinzo Abe, saudando o anúncio de Pyongyang, sublinhou que o "mais importante é o de saber se a decisão vai culminar no abandono total" dos programas nuclear e de mísseis norte-coreanos, e isto de "maneira irreversível e verificável".
No passado, quer em 2000 quer em 2007, assim como no quadro das negociações a seis (2003-2009), envolvendo as duas Coreias, China, EUA, Japão e Rússia, Pyongyang mostrou-se disponível para concessões em certas matérias, inclusive na questão da desnuclearização da península, para acabar sempre por voltar atrás e prosseguir o desenvolvimento dos programas bélicos.
A dúvida é precisamente aquela a que o governante japonês deu voz e subscrita pelo ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, Heiko Maas, para quem "é necessário prosseguir com passos como "a verificação de todo o programa nuclear e balístico" norte-coreano.
Para já, as expectativas situam-se num patamar elevado, considerando o nível e o carácter das iniciativas desenvolvidas. A que se soma o próprio comportamento do dirigente norte-coreano, que não pode deixar de ter algo que ver com a recente viagem a Pequim, em finais de março. Trump sempre disse que Xi podia ter um papel de destaque na resolução da crise coreana e na forma como decorreu a deslocação sugerem que o líder chinês terá usado a sua posição como principal aliado de Pyongyang para sublinhar a importância de uma alteração qualitativa da Coreia do Norte.