Frente ao mar revolto, o deus Hércules abeira-se do seu cão. Na linha de praia que desenha a fronteira entre a espuma da rebentação, repousa alguma fauna marinha, expondo-se entre arremetidas da ondulação. Prende-nos o olhar o molusco aprisionado sob a pata do canídeo. A atenção de Hércules recai no caracol marinho de casca espiralada. O deus faz uma pausa no caminho que o leva ao cortejo de uma ninfa..A cena, imortalizada em esboço no ano de 1636 por Peter Paul Rubens, pintor flamengo, destinava-se a servir de base a uma tela a óleo que adornaria a Torre de la Parada, nos arredores de Madrid. Rubens morreu antes de materializar em tela o dito esboço (mais tarde corporizado na pintura de Theodoor van Thulden). A cena ali representada inspirou-se na descrição do gramático grego do século II d.C. Júlio Pólux. De acordo com o mito, terá sido Hércules a descobrir o pigmento que nos milénios seguintes inebriou imperadores, reis e clérigos. A mandíbula do cão esboçado pelo pintor flamengo tingiu-se de púrpura após cravar os dentes no molusco oferecido pelas ondas. A cor mostrou-se de tal forma bela que a ninfa soçobrou ao desejo de a querer ver tingir o seu vestido..Numa escala de raridade das cores, numa época muito anterior à descoberta dos corantes sintéticos, o púrpura-de-tiro arrebatou o pódio. Não só era raro, como o método de produção se apresentava complexíssimo, apurado ao longo de séculos. Perante os olhos deste século XXI, o recurso à matéria-prima que servia de base ao púrpura-de-tiro afigura-se uma afronta ambiental. A mestria no desenho que Rubens aplicou no seu esboço denominado Cão de Hércules Descobre o Púrpura peca na representação da espécie marinha, explorada, entre outros, por fenícios, gregos, romanos, bizantinos, para obtenção do precioso pigmento. Para o efeito, os caracóis de casca espiralada não foram incomodados. Duas espécies de gastrópodes marinhos, dos géneros Hexaplex trunculus e Hexaplex brandaris, pagaram um elevado preço pelo mecanismo de caça que os dota. Estas espécies marinhas, carnívoras, movem-se com fins predatórios, exalando uma secreção capaz de sedar as presas, proveniente da glândula hipobranquial. A minúscula glândula ditou o destino dos gastrópodes ainda no século XII a.C., quando os fenícios fizeram da localidade de Tiro (no atual Líbano), nas margens do mar Mediterrâneo, um centro extrator do pigmento mágico. Obtê-lo, em pequenas quantidades, implicava a fervura de dezenas de milhares de moluscos..Quis o feitiço dos processos químicos que as peças de lã tingidas com o púrpura-de-tiro melhorassem em atributos quando expostas ao ar e à luz solar. Com o passar do tempo, a cor tornava-se mais brilhante e intensa; camaleónica na sua evolução, migrando do amarelo para o verde, depois azul e, fixando-se no púrpura..Porém, cada animal, com poucos gramas de peso, contribuía com diminuta quantidade de pigmento. Estima-se que de 12 mil caracóis marinhos se extraísse pouco mais de um grama de pigmento, tão-só para tingir a bainha de um manto..O púrpura-de-tiro não era somente raro, caro e insustentável para os ecossistemas. Fedia o pigmento que levou Roma, no século IV d.C., a estabelecer restritivas leis sumptuárias, com o propósito de limitar o seu uso em trajes imperiais. Também no Império Bizantino a produção dos gastrópodes marinhos que forneciam o pigmento para tingir peças de seda era controlada e subsidiada pela corte. Estatuto que se passeava indiferente ao odor que emanava dos mantos sagrados, ao qual não era alheio o método de produção do pigmento..Extraídas as glândulas dos moluscos, estas permaneciam por três dias em salmoura, levada depois ao fogo em vasilhas de estanho onde fervia lentamente. Obtida a separação do líquido dos elementos sólidos, eram tingidas as lãs. Processo que carecia de um mordente potente, capaz de fixar o pigmento ao tecido. Urina, cobre, alumínio e estanho encontravam-se entre os ingredientes usados num processo nauseabundo afastado dos povoados..A procura por gastrópodes, assim como líquenes, manteve-se por séculos e com elevado preço de comercialização. Na Inglaterra vitoriana da segundo metade de oitocentos, o jovem químico William Perkin laborava em laboratório na tentativa de sintetizar a quinina para o tratamento da malária. A doença grassava em diferentes pontos do Império Britânico. O resultado da experiência de Perkin saldou-se numa precipitação acastanhada, depois purificada com etanol. A solução obtida brilhava numa cor vivaz. No ano de 1856, o químico de 18 anos patenteava o primeiro corante químico orgânico sintético, o púrpura-de-anilina. Em 1862, a rainha Vitória apresentou-se em público na inauguração da Exposição Mundial com um manto tingido naquela cor..dnot@dn.pt