Projetos esquecidos das Américas
Perdidas recordações fundamentais sobre a unidade do continente americano, lembra-se a memória do diálogo atribuído ao Abade Correia da Serra, um dos fundadores da Academia das Ciências de Lisboa, e seu amigo Thomas Jefferson, que representa a história americana. Nessa relação foi colocada a visão do futuro, com a coordenação do norte do continente pelos Estados Unidos e a sul pelo Brasil. Na atual grave situação em que nos encontramos, mesmo neste espaço ocidental, o desacordo já deve afetar o pensamento de então. De facto a anunciada dificuldade, já evidente, sobretudo pelo ato de Biden, evitando o convite à Venezuela, Cuba e Nicarágua para a reunião das Américas.
Avulta a importância de serem os Estados Unidos da América o organizador mais autorizado do acontecimento. Um dos contos de Eça de Queiroz, muito divulgado por Carreira das Neves e intitulado A Perfeição, imaginou Ulisses fatigado pela beatitude em que se vivia na ilha de Ogígia, nos braços acolhedores da Deusa Calipso, e desafiando estas lamentações: "Ó deusa, há oito anos, oito anos terríveis, estou privado de ver o trabalho, o esforço, a luta e o sofrimento... Ó deusa, não te escandalizes! Ando esfaimado por encontrar um corpo arquejando sob um fardo; dois bois fumegantes puxando um arado; homens que se injuriam na passagem de uma ponte; os braços suplicantes de uma mãe que chora; um coxo, sobre a muleta, mendigando à porta das vilas... Deusa, há oito anos que não olho para uma sepultura...". A tristeza do amanhecer das folhas, para o desperdício das últimas unidades de vida disponíveis.
Os factos definem esta realidade, no que respeita aos direitos e deveres, que são sempre louvados nas épocas religiosas. As intervenções do Papa Francisco puseram em evidência a contradição entre as promessas da ONU e as práticas inquietantes. É sempre uma referência a deveres, valores e paz global. Os motivos de preocupação são manifestados cada dia, o globalismo traduz-se na vivência múltipla e contraditória entre as gerações vivas, violando os valores consagrados na paz débil da Segunda Grande Guerra Mundial. As circunstâncias inclinam para repetir comentários antigos (A Europa em Formação, ISCSP, 2004).
Tudo isto são manifestações, entre outras, de uma sociedade internacionalmente também contestatária, instável, mais negadora do que afirmativa. Sinais de uma Sociedade em processo de mudança, com um dinamismo acelerado dos termos de referência e a crise, uma das palavras mais usadas do nosso tempo. É uma das palavras de conteúdo mais indisciplinado, cobrindo uma série de planos que muito conviria disciplinar, ao menos para facilidade de entendimento dos que ainda não desistiram de ver claro no panorama do nosso tempo. Só para fins de análise temos entendido que a crise pode dizer respeito aos dados de facto, que se alteram, designadamente os elementos objetivos de análise do poder das potências; a crise pode dizer respeito aos procedimentos adequados para enfrentar o desafio dos factos, regras de substância e regras adjetivas, regras de prudência ou de cortesia; a crise pode dizer respeito aos valores que definem o critério de avaliação das políticas, que exprimem os objetivos supremos da comunidade internacional. Pois a crise atingiu todos estes domínios, com aceleração não conhecida antes da era interplanetária em que nos encontramos.
Os centros de decisão multiplicam-se e diversificam-se, alinham-se e desalinham-se, alterando constantemente os dados de facto em que se analisa a conjuntura; as regras de procedimento de fundo e de forma são recusadas ou não-observadas por uma série de poderes que simplesmente alegam que lhes não convém ou que não participaram no seu estabelecimento; os valores supremos passam cada vez mais por aquela angústia que Morente exprimiu, de maneira tão eloquente, ao pôr em evidência a impossibilidade de demonstrar logicamente a sua hierarquia e a nossa condição de não poder escapar à dolorosa necessidade de escolher.
Correndo os riscos sempre inerentes às exemplificações neste domínio, porque dificilmente se encontram exemplos de implacável neutralidade científica, compare-se o que foi a Europa, e também o Ocidente, de Schumann, de Adenauer, e De Gasperi, com as mesmas realidades de Pompidou, Willy Brandt e Wilson. O anticomunismo, o sentido atlântico, o projeto europeu de então, não guardam qualquer identidade com a perplexidade atual de alinhamentos entre as esquerdas e as direitas, com uma conceção do Atlântico à procura de redefinição geográfica e política, com uma Europa que hesita entre as práticas e a supranacionalidade, entre a continentalidade inicial e o alargamento britânico. De maneira evidentíssima, essa variável nova que é a velocidade da mudança, tão contrária ao ensinamento antigo das virtudes do tempo demorado, está marcada na alteração do conceito político do Mediterrâneo que tanto nos interessa.