Professora acusa escola pública de a castigar por ter recusado "receber" o bispo

Aconteceu em junho, na Madeira: crianças de escola pública foram levadas à igreja para "receber" o bispo. Professora não aceitou participar por "ser contra misturar escola com religião". A recusa surge na sua classificação como fator negativo.
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"Foi no final de junho, já só o pré-escolar estava a funcionar. O padre da paróquia resolveu convidar a diretora para ir com os meninos receber o bispo à igreja. E, numa reunião, a diretora disse: 'As crianças da pré vão no dia 26 de junho de manhã receber o senhor bispo'."

A escola em causa é pública: trata-se da Escola EB1 PE de Ponta Delgada e Boaventura, jardim-de-infância e 1.º ciclo no concelho de São Vicente, Madeira, e quem narra é Isabel Teixeira, há 30 anos na Madeira como educadora no pré-escolar e há 16 nesta escola. A qual, perante o anúncio da diretora, manifestou a sua oposição: "Não concordo que se misture a escola com religião. Estou a trabalhar nessa manhã, e não vou." Outra docente teve a mesma posição.

De acordo com a narradora, a diretora, Ana Cristina Moura Abreu, disse-lhe logo ali que "ia ter consequências". Mas no dia aprazado as crianças que estavam ao cuidado de Isabel, e que têm de 3 a 5 anos, foram levadas pela diretora ao encontro do bispo Nuno Brás da Silva Martins. No Facebook do Centro Paroquial e Social do Bom Jesus fotografias atestam o encontro, mostrando o bispo junto das crianças e dos docentes, incluindo a diretora da escola.

Não foi, garante Isabel, a primeira vez que a diretora, que está em funções há dois anos, quis misturar escola e religião: em dezembro de 2018 terá proposto a realização de uma missa na escola. "Mas houve uma votação e ganhou o não. Então a seguir disse que o padre tinha convidado a escola para ir assistir à missa. Recusei ir mas a colega que estava da parte da tarde disse que não se importava de trocar comigo e foi ela que levou as crianças à missa."

Já sucedera, no consulado de outros diretores, a escola associar-se a acontecimentos religiosos, mas nunca antes Isabel se sentira pressionada a participar. "Sou ateia mas não ando com um rótulo. Em 30 anos nunca tinha tido nenhuma pressão até agora. Com as anteriores diretoras não tive problemas deste género. Quando veio cá à Madeira a imagem da Nossa Senhora de Fátima fazer as visitas das freguesias, a outra diretora resolveu fazer excursão com as crianças para ir ao encontro da imagem. Recusei-me e não houve nenhum problema."

Agora foi diferente. Estando no sexto escalão da carreira, para subir para o sétimo, em 2020, tem de ter "muito bom", ou, tendo apenas "bom", sujeitar-se às quotas da Secretaria Regional da Educação. Em junho entregou o seu relatório anual de avaliação. Quando recebeu a nota percebeu que num dos parâmetros tinha tido uma classificação fraca. Questionou a avaliadora, que lhe disse que a diretora, que também faz parte da secção de avaliação, não lhe tinha permitido dar mais. "Fiz a minha reflexão e revi o meu trabalho e por considerar que me estavam a prejudicar deliberadamente resolvi reclamar da nota. O pedido foi indeferido e recorri." Nesse recurso, explica, teve de fazer alegação e escolher um árbitro, enquanto a diretora fazia a contra-alegação.

Quando teve conhecimento da contra-alegação da diretora, Isabel ficou perplexa ao constatar que a sua recusa de receber o bispo é ali referida como fator negativo na avaliação.

No parâmetro "Dinamização de projetos desenvolvidos e inovação educativa" e no indicador B.3.1, "envolve-se em projetos e atividades da escola que visam o desenvolvimento da comunidade educativa", está escrito: "No que se refere ao indicador B.3.1, ao contrário do referido pela docente, entendo que a valoração atribuída, de 7,5, correspondente ao nível quantitativo 'bom', é adequada, pois a docente não cumpriu com o disposto no descritor correspondente ao nível 'muito bom', que implicaria ter-se 'envolvido de forma ativa em projetos e atividades da escola'." "A docente de facto participou nos diferentes projetos propostos no Plano Anual de Atividades, mas recusou-se a participar em algumas atividades, [sic] propostas pela diretora/parceiros e aprovadas por maioria em conselho escolar. Exemplificando: saída do Pão por Deus à Câmara, desfile de Carnaval, receção ao Sr. Bispo no adro da igreja." E concluía assim Ana Cristina Moura Abreu a sua resposta à reclamação de Isabel: "Em súmula, considero que atendendo aos factos acima evidenciados será de manter a valoração atribuída, tendo a avaliação em questão ter sido [sic], quanto [sic] muito, sobrevalorizada e não subvalorizada nos parâmetros em questão."

"Respeito que as pessoas sejam católicas mas não podem obrigar-me"

Ao DN, a reclamante conta a sua estupefação: "Não fazia a mínima ideia, claro, de que a diretora ia colocar na avaliação a minha recusa de ir ao adro da igreja receber o bispo. Isso não faz parte do meu trabalho com as crianças e não estava no plano anual de atividades. Além de que me parece um abuso, até do ponto de vista das crianças e dos pais, que muitas vezes dizem que sim, que os filhos podem ir, para não parecer mal. Estamos num meio rural... Respeito que as pessoas sejam católicas e tenham essa vivência de igreja, mas não podem obrigar-me."

A sua recusa de participar no desfile de Carnaval, explica, prende-se com o facto de este, que costumava realizar-se à sexta, ter passado a realizar-se ao domingo por decisão da câmara. "Quando colocaram a questão eu disse que ao domingo não trabalho. Nunca nenhuma direção tinha levantado antes qualquer questão com isso. Agora, até isso esta diretora pôs na avaliação." Quanto ao episódio do Pão por Deus, que ocorre a 31 de outubro, a docente diz que em 2018 acompanhou as crianças no seu turno, de manhã, mas não estava prevista a ida à câmara, que ocorreria no turno da tarde.

O DN contactou Ana Cristina Abreu, começando por perguntar-lhe se confirmava se fora proposta sua levar as crianças da escola ao adro da igreja "receber" o bispo. "Não confirmo que isso aconteceu", começou por dizer a diretora da Escola de Ponta Delgada e Boaventura. Ao ser confrontada com a existência de fotografias da "receção", escusou-se a esclarecer de quem fora a proposta: "Não confirmo que foi da minha parte ou não. Essas coisas são decididas em conselho escolar. Não confirmo se foi da minha parte ou da parte do padre." Quando o DN lhe perguntou que tem o padre que ver com a escola, Ana Cristina Abreu afirmou que não diria mais nada e desligou o telefone.

O DN ainda voltou a contactá-la, por sms, solicitando esclarecimento sobre os objetivos pedagógicos da receção ao bispo e se confirmava ter proposto a realização de uma missa na escola e, igualmente, com que objetivos pedagógicos. Pedia-se também confirmação sobre a penalização de uma docente em sede de avaliação por ter recusado acompanhar as crianças à receção do bispo e, por fim, questionava-se a diretora da escola de Ponta Delgada e Boaventura sobre se não colocava a hipótese de que quer a imposição à educadora da participação na "receção" e a penalização por não ter participado, quer a própria iniciativa de levar crianças a receber o bispo e a proposta de realização de missas na escola porem em causa o princípio da liberdade religiosa.

Não houve resposta. Mas Eduardo Vera Jardim, presidente da Comissão de Liberdade Religiosa, não tem qualquer dúvida: "Há um mau entendimento do papel da religião e das relações da religião com o Estado. A escola é do Estado, não tem de haver essa confusão com a religião. É um caminho para se fazer, porque há hábitos que levam tempo a perder - uma coisa são as leis e outra a cultura que está impregnada no povo, nas instituições - mas, para que as coisas mudem, este tipo de situação tem de ter consequências. Obviamente uma pessoa não pode ser penalizada em termos de classificação por se ter recusado a participar num ato relacionado com a religião. A senhora tem toda a razão. Esse parâmetro não deve contar para a avaliação - é inconstitucional que conte. A Constituição é clara, ninguém pode ser prejudicado ou beneficiado por causa da religião, por uma opção religiosa ou por se opor a uma coisa dessas."

A questão, para Vera Jardim, não se atem ao dano causado à docente, que no seu entender deveria fazer uma queixa à provedora de Justiça. Em causa está também o direito das crianças a não serem alvo de proselitismo por via da escola - obrigada a não o fazer nos termos do artigo 4º da Lei de Liberdade Religiosa, que prescreve não poder o ensino público ser confessional, nem o Estado programar a educação segundo quaisquer diretrizes religiosas - e dos seus pais a não serem obrigados a ver a sua privacidade invadida quando questionados pela escola sobre se permitem ou não aos filhos receber o bispo. "Nos pequenos meios, e sobretudo em meios mais religiosos, isso é uma pressão que não pode existir", sublinha o presidente da Comissão de Liberdade Religiosa.

"Tenho colegas que dizem: Qual é o mal? Toda a gente é católica"

A propósito, recorde-se que o Governo Regional da Madeira exarou em 2013 uma norma em que pretendia que a matrícula na disciplina de Educação Moral e Religiosa funcionasse "por defeito", sendo necessário os encarregados de educação manifestarem oposição para que os alunos não fossem obrigados a frequentá-la. O representante da República para aquela região autónoma recorreu ao Tribunal Constitucional, que considerou a norma inconstitucional. No acórdão, cujos signatários incluem Maria Lúcia Amaral, atualmente provedora de Justiça, o tribunal cita outra sua decisão de 1983, quando a questão se colocou face a um decreto do governo da República, e o "direito de guardar reserva pessoal sobre as escolhas religiosas". Esse direito é violado, diz o TC, quando se impõe que para "defesa e em proteção das respetivas convicções religiosas" o cidadão seja obrigado "a exteriorização de uma manifestação de vontade, que se desejaria silenciar e manter no domínio da estrita reserva pessoal".

O acórdão, que fala também da obrigação de não confessionalidade da escola pública, explicita em que consiste a liberdade religiosa: "Enquanto liberdade negativa, a liberdade religiosa consiste fundamentalmente numa liberdade de 'não fazer': ninguém é obrigado a ter ou a professar uma religião, e, consequentemente, ninguém é obrigado a usufruir de ensino religioso. O gozo destas liberdades faz-se, precisamente, 'não agindo' (...)."

Dir-se-á que também no caso das missas nas escolas e de outras iniciativas religiosas organizadas pelas escolas o facto de se obrigarem os docentes e demais funcionários a tomar uma posição - concordar ou não, participar ou não - assim como os encarregados de educação a permitir ou não a participação dos alunos viola a respetiva liberdade religiosa.

Isabel Teixeira suspira. "É evidente para mim que isto não deveria acontecer. Mas tenho colegas que dizem: Qual é o mal? Toda a gente é católica, os pais são católicos, até gostam." Não vai porém baixar os braços: já falou com o seu sindicato e tenciona apresentar queixa contra a responsável escolar por abuso de poder.

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