Primeira médica portuguesa foi em 1889, primeira presidente talvez no século XXI

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Já sabia que no século XIX o DN era adepto de frases de grande eloquência, como a de Victor Hugo a gritar "Portugal dá o exemplo à Europa. Desfrutai de antemão essa imensa glória" ou a de D. Luís a proclamar "Nasci português, português quero morrer". Mas num caso era o escritor francês a elogiar a abolição da pena de morte, no outro o rei a desmentir que nos quisesse trocar pelos espanhóis. Desta vez descobri, através de um grupo no Facebook de admiradores de história de Portugal, uma tirada que se podia atribuir à própria redação, a um qualquer jornalista ou editor: "Para trás a touca de rendas e o avental de chita, para trás o tricô e a agulha de marfim, para trás o pot au feu! Honra à ciência! Glória ao bisturi!". Entusiasmava-se assim o jornal com a notícia da primeira médica portuguesa a abrir em 1889 um consultório em Lisboa.

Contudo, a primeira página datada de 1 de setembro, que fui consultar no arquivo, traz apenas a parte informativa do texto que circula na net, pelo que fica a dúvida: terá o DN voltado ao tema noutro dia ou haverá mistura de duas citações? Quem terá escrito "Honra à ciência! Glória ao bisturi!"?

Chamava-se Elisa Andrade a pioneira.E viriam mais duas outras médicas a caminho, neste caso ambas do Porto. Várias outras mulheres médicas se formariam nos anos seguintes, as duas décadas finais da monarquia. Uma delas foi Carolina Beatriz Ângelo, que em 1911 entrou para a história como a primeira mulher a votar em Portugal. Seria também durante bastante tempo a única, pois a república apressou-se a esclarecer a lei eleitoral mas no sentido restritivo, recusando o direito de voto até às mulheres que podiam invocar ser chefe de família, como Beatriz Ângelo, que era viúva e tinha de sustentar uma filha. Há quem especule que os chefes republicanos, embora progressistas, temiam que as mulheres fossem um reservatório de votos para eventuais partidos feitos com a Igreja Católica.

Por coincidência, escrevi nesta semana sobre a calvinista Holanda. E numa troca de palavras com José Rentes de Carvalho, escritor português que conhece como poucos os Países Baixos, constatei que nos últimos 130 anos tiveram uma rainha em 123 deles. Aliás, desde a morte de Guilherme III em 1890, só voltou a reinar um homem em 2013, o atual monarca Guilherme Alexandre. E a primeira na linha de sucessão é Catarina Amália, o que significa que um dia destes - e lá existe a tradição de abdicar quando se envelhece - os holandeses voltarão a ter uma rainha.

A primeira médica na Europa foi Aletta Jacobs, admitida na universidade em 1871, uns anos antes da nossa Elisa Andrade. Era holandesa e mesmo sem adivinhar que o seu país viria a ter um século de mulheres chefes do Estado (coroadas) começou também a reivindicar o direito de voto. Dizia reunir todas as condições a nível pessoal e afinal a Holanda não era desde a sua independência conquistada à Espanha de Filipe II um exemplo de liberalismo?

Contudo, só em 1917 as holandesas conseguiram o direito de votar. E totalmente livre em 1919. Antes na Europa apenas a Finlândia, quando era um grão-ducado do Império Russo, e a Suécia. Pioneira a nível mundial foi a Nova Zelândia, ainda no século XIX.

Em Portugal, foi o Estado Novo que foi reconhecendo pouco a pouco o direito de voto feminino. Sempre com limitações específicas de sexo, umas de escolaridade, outras de rendimento, sempre também com as limitações que o carácter ditatorial do regime salazarista impunha. Foi preciso mesmo esperar pelas eleições constituintes de 25 de abril de 1975 - um ano depois da Revolução dos Cravos - para que todos os portugueses, homens como mulheres, pudessem votar.

Hoje, a comparação entre Portugal e a Holanda pode ser feita sem que nenhum dos países saia bem da fotografia. Afinal, Portugal teve apenas uma primeira-ministra (Maria de Lourdes Pintasilgo, num governo de iniciativa presidencial) e a Holanda nenhuma. Isto numa Europa onde líderes no feminino, sem serem de casas reais, têm vindo a ser cada vez mais comuns desde os tempos da britânica Margaret Thatcher. O Reino Unido repetiu até com Theresa May, a Alemanha é governada há 15 anos por Angela Merkel, nos países nórdicos deixou de se contar até porque a mui republicana Finlândia chegou a acumular uma chefe de governo com uma chefe do Estado.

Mundo fora, a situação é muito diversa. Não faltam exemplos vindos das dinastias políticas, mesmo que como muito valor, caso da pioneira Sirimavo Bandaranaike, do Sri Lanka, ou de Indira Gandhi e Benazir Bhutto. Também há quem tenha triunfado sem ser filha ou viúva de político, como o caso de Dilma Rousseff no Brasil. Mas nos Estados Unidos, depois do fracasso de Hillary Clinton há quatro anos, resta pensar na eleição de Kamala Harris neste ano para vice-presidente e a chegada da sua hora em 2024 acreditando que Joe Biden, caso derrote Donald Trump, só fará um mandato na Casa Branca. Sim, até hoje os Estados Unidos nunca tiveram uma mulher presidente ou sequer vice-presidente.

Voltemos a olhar para Portugal, onde a social-democrata Manuela Ferreira Leite foi a única mulher que se pode dizer disputou a chefia do governo, pois foi a única a liderar um dos dois grandes partidos. E nas presidenciais que se aproximam uma vez mais também não há uma mulher apoiada por PS ou PSD. Por isso, o melhor resultado de uma candidata presidencial tenham sido os 10% de Marisa Matias em 2016, um pouco acima do resultado de Pintasilgo em 1986. A acreditar nas sondagens há agora grandes hipóteses de Ana Gomes bater o recorde da bloquista, mas por pouco. E quando se fala no pós-Marcelo Rebelo de Sousa, ou seja as presidenciais de 2026, os nomes que a tradição política torna previsíveis candidatos são sempre os de ex-primeiros-ministros ou os de ex-vice-primeiros-ministros, ou seja nenhuma mulher.

Recorro de novo à memória deste país que é este DN. Em 1970, uma mulher entrou pela primeira vez no governo português, Marcelo Caetano tinha já sucedido a Salazar. Nesse mesmo 21 de agosto, o Diário de Notícias titulava na primeira página "Pela primeira vez uma senhora no governo", referindo-se a Maria Teresa Lobo, a nova subsecretária da Saúde e da Assistência (o jornal escreveu "subsecretário"). O ministro da Saúde era então Baltazar Rebelo de Sousa, pai do atual Presidente da República.

Muito mudou desde então no país, nem tudo à velocidade desejável, mas admiremos o exemplo longínquo de Elisa Andrade. A 8 de setembro de 1889 o jornal voltou a falar dela e do sucesso do consultório de doenças de senhoras e de crianças. Talvez ainda apareça, continuamos à procura, a tal frase entusiasmada.

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