Presos na sala de espelhos

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Do sítio onde a maioria das pessoas participa no debate político, alguns não conseguem ver, de esguelha que seja, o que os outros veem com total clareza. Não há um esforço de aproximação. Se Cavaco Silva e Passos Coelho pedem o fim da obrigatoriedade das aulas de Cidadania e Desenvolvimento, à esquerda nem há conversa. Vindo de quem vem, traz água no bico, sentenciam as redes sociais. A direita também não faz por menos e para tratar uma ferida propõe que se corte uma perna à criatura. Andamos nisto.

A sensação com que fico, chegado aqui com memória de um passado recente, é que a esquerda pensou que tinha o exclusivo das causas fraturantes. Pelo menos, o exclusivo do poder de iniciativa. Estas causas não são um exclusivo de ninguém e pressupõem, aliás, que no outro lado exista em medida aproximada quem defenda exatamente o contrário. A sociedade, que já está dividida sobre uma determinada matéria, fica com uma fratura exposta sempre que impõe a derrota a uma das partes.

Voltemos à Cidadania. Os signatários do manifesto, que pede o fim da obrigatoriedade da disciplina, alegam que não querem a escola a cumprir o papel dos pais. Católicos praticantes não querem os filhos a aprender religião com professores ateus. De igual modo, para pais altamente conservadores causa espécie que a sexualidade seja ensinada aos seus filhos por professores libertários. É assim tão difícil compreender e aceitar que isto seja uma preocupação séria para muitos pais? É impossível fazer um caminho de aproximação para seduzir esses pais para a necessidade de ter os seus filhos numa aprendizagem que os torne melhores cidadãos?

O que sabemos todos do ensino desta disciplina, que é recente e recomendada pelas instituições europeias, é que ela tem sido ministrada com exigências muito diferentes de escola para escola. Em muitos sítios, aproveita-se esse horário escolar para tirar dúvidas de outras disciplinas. Noutros, passa-se o tempo a falar das coisas da vida. O ensino desta disciplina não tem sido a imposição de crenças e doutrinas que os contestatários querem fazer crer que existe, mas também está muito longe de ser a escola de virtudes que os utópicos julgam ser possível construir. Até podíamos concordar que um aluno chumbasse por não saber separar o lixo para reciclagem ou por não saber os artigos da Constituição que garantem a igualdade de direitos a todos os cidadãos, isso significaria que todos sabíamos em concreto que matéria relativa à cidadania está a ser ensinada aos nossos filhos.

Se há quem encha o peito para lutar por causas fraturantes, é absolutamente necessário que perceba que ninguém ganha quando a uma das parte é imposta uma visão única da sociedade de que todos fazemos parte. Ninguém está sempre certo. Não se reduza o debate, sobre esta causa ou sobre outras causas fraturantes, a banalidades que pretendem acabar com o debate e não promovê-lo. Por exemplo, nem os pais que querem acabar com a obrigatoriedade desta disciplina pretendem que os filhos não sejam bons cidadãos nem os filhos que pretendem legalizar a eutanásia estão à procura de uma forma para matar os pais e assim se verem livres deles.

Já só queremos ouvir os que pensam exatamente como nós. As redes sociais já não são só as redes sociais, passaram a dominar a forma como debatemos até fora delas. O sítio para onde caminhamos é uma sala de espelhos que reflete apenas o nosso pensamento. Mais à direita ou mais à esquerda, mais conservadores ou mais liberais, estamos cada vez mais indisponíveis para perceber a razão dos outros. Espantoso é haver tanta gente convencida de que este é o caminho!

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