É do presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses a segunda assinatura no acórdão que mantém a pena suspensa aos dois homens que violaram uma jovem de 26 anos, inconsciente, numa discoteca de Gaia, em novembro de 2016. E que diz ter havido "um ambiente de sedução mútua", considerando que "a culpa dos arguidos se situa na mediania", e a "ilicitude é baixa"..Contactado pelo DN, Manuel Soares, juiz desembargador no Tribunal da Relação do Porto, na segunda secção criminal, a que pertence a relatora do acórdão, Maria Dolores da Silva e Sousa, confirmou ser o outro autor de uma decisão que refere exclusivamente os danos físicos causados pela violação na vítima, estatuindo que "não existem [ou são diminutos]" e que não houve "violência [o abuso da inconsciência faz parte do tipo]"..O representante sindical dos juízes invocou "impossibilidade estatutária" - o dever de reserva a que os magistrados estão obrigados pelo seu estatuto - para negar qualquer comentário.."Justiça machista não é justiça".O acórdão, que foi noticiado pelo DN na quinta-feira e comparado, por uma magistrada citada pelo jornal, ao do caso espanhol La Manada (que também dizia respeito a uma jovem embriagada, violada por vários homens, e encheu as ruas de Espanha de protestos), suscitou, durante esta sexta-feira, a convocação de protestos no Porto na próxima quarta-feira, e em Lisboa, na sexta, sob o mote "justiça machista não é justiça." Até ao momento, mais de três mil pessoas manifestaram interesse em estar presentes..O que desencadeia os protestos é a noção de que o acórdão, como a decisão objeto de recurso - do Tribunal de Vila Nova de Gaia -, desculpabiliza os autores do crime e, como disse ao DN a penalista Inês Ferreira Leite, "despacha de forma menorizante os efeitos do crime na vítima", evidenciando um viés de género na apreciação dos factos. E é partilhada por Teresa Pizarro Beleza, diretora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, penalista e professora catedrática..Citando um excerto da decisão - "Os factos demonstram que os arguidos estão perfeitamente integrados, profissional, familiar e socialmente...", Beleza prossegue, irónica: "Pois estão, estarão... o problema é mesmo capaz de ser esse." E explica: "Já ensinei o tema 'crimes sexuais' em vários sítios, incluindo a Universidade de Lisboa e a Universidade Nova de Lisboa, e vejo como é difícil fazer compreender a muita gente o que está em causa, nestes "incidentes", de dimensão de desequilíbrio de poder no contexto de relações de género. (...) São milénios de tradição de submissão e desigualdade que pesam sobre nós, não é fácil mudar formas de ver que tanto nos condicionam, quantas vezes de forma inconsciente.".O texto de Teresa Beleza, escrito no Facebook, foi partilhado no mesmo meio por Dulce Rocha, magistrada do Ministério Público e presidente do Instituto de Apoio à Criança, com um comentário no mesmo sentido: "Mais uma decisão em que dificilmente não vislumbramos discriminação de género na forma de valorizar o sofrimento da vítima ou pelo contrário mitigar a responsabilidade criminal."."Se foi violada é porque estava a pedi-las?".Também os deputados Isabel Moreira, do PS, e Moisés Ferreira, do BE, escreveram sobre o acórdão.."Não é só a 'sedução mútua' invocada para a suspensão da pena que me perturba. Há muita coisa ali escrita que reflete a reprodução insistente da desigualdade estrutural entre homens e mulheres. A perceção do que são as consequências de uma violação é ignóbil. É muita coisa", diz a socialista, que promete: "Escreverei sobre este acórdão.".Já o bloquista reproduz o essencial do caso - "Dois homens, funcionários de uma discoteca, violam uma mulher na casa de banho dessa mesma discoteca. A mulher está inconsciente. Não pode resistir. O tribunal diz que houve um ambiente de sedução mútua, que os danos físicos na vítima são diminutos e que não houve violência" - para perguntar: "Como é possível? Uma sentença que reproduz a ladainha do "se foi violada é porque estava a pedi-las"?".Foi pelo mesmo motivo - a culpabilização da vítima mulher e a desculpabilização do agressor homem -, mas em casos de violência doméstica, que o Tribunal da Relação do Porto mereceu, há um ano, um protesto que juntou mais de 28 mil assinaturas numa petição ao Conselho Superior de Magistratura a exigir um procedimento disciplinar contra o juiz Neto de Moura e cossignatários de decisões em que se invocava o adultério ou a suspeita para "contextualizar" violência contra mulheres..Na altura, a Associação Sindical dos Juízes era presidida por Manuela Paupério, que disse não se rever, "como cidadã", nas considerações do colega, e que os juízes não são "uma casta de gente perfeita": "Somos pessoas, cometemos erros. (...) Volta e meia, há uma decisão má, por aplicar considerações desajustadas. Era bom que não acontecesse nunca." Ainda assim, indignava-se contra os "insultos" contra o juiz, considerando existir um clima de "linchamento público", e afirmava: "Sem prejuízo da legitimidade de críticas às decisões e aos seus fundamentos, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses repudia o aproveitamento do caso para descredibilizar toda a justiça portuguesa.".Mais recentemente, Neto de Moura voltou a ser objeto de notícia, a propósito de um processo que instaurou a militares da GNR, por denúncia caluniosa e falsidade de testemunho, e no âmbito do qual afirmou: "Em situações em que é posta em causa a legalidade da sua atuação, os agentes policiais, geralmente, mentem e não têm qualquer pejo em fazê-lo em documentos públicos e em tribunal." A ASJP, já presidida por Manuel Soares, demarcou-se destas afirmações, em comunicado..No caso dos acórdãos que citavam o adultério como "justificação" de violência doméstica, o CSM acabou por instaurar um procedimento de averiguações ao juiz Neto de Moura, após até o Presidente da República e a ministra da Justiça terem-se referido ao assunto. Ainda não é conhecido o resultado do procedimento..Sobre esta nova polémica, relativa ao acórdão assinado por Maria Dolores Silva e Sousa e Manuel Soares, o CSM, contactado pelo DN, não reagiu.