Prémio Leya para romance sobre o mal entre nós

João Pinto Coelho, autor de "Perguntem a Sarah Gross", editado em 2015, venceu o Prémio Leya deste ano com o inédito "Os Loucos da Rua Mazur", no qual volta à Polónia, à Segunda Guerra Mundial e ao Holocausto. O arquiteto e professor vai receber cem mil euros e admite que quer continuar a escrever.
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Todos os dias, João Pinto Coelho faz 50 quilómetros de carro do sítio onde mora, perto de Murça, até Valpaços, onde dá aulas numa escola secundária. E mais 50 quilómetros de regresso a casa. Desde que começou a escrever romances, nunca mais fez essas viagens sozinho. Vai divagando por outras paisagens, conversando com as personagens, atando os fios da narrativa na sua cabeça. "Escrever um livro é viver duas vidas ao mesmo tempo", diz. "Isso é extraordinário porque deixamos quase de ter espaço e tempo para essas duas vidas, não temos tempos mortos nem momentos em que não sabemos o que é que havemos de pensar." Foi assim com Perguntem a Sarah Gross, o seu primeiro livro, que foi finalista do Prémio Leya em 2014 e acabou por ser publicado pela Dom Quixote em 2015. Foi assim também com Os Loucos da Rua Mazur, o livro que o ocupou durante praticamente todo o ano passado e com o qual acabou de vencer o Prémio Leya.

Algo une as duas obras de João Pinto Coelho: ambas se passam na Polónia, no período que antecede ou que coincide com a Segunda Guerra Mundial. Nascido em 1967, o autor vive em Trás-os Montes e é arquiteto e professor do ensino secundário, onde leciona Educação Visual, Geometria, Design. O interesse pelo Holocausto e por todos os assuntos que lhe estão ligados começou logo depois de terminado o curso. "Desde então, fiz muita investigação mas era para mim, não era para produzir nenhum texto, muito menos para publicar. Era uma questão que me interessava de tal maneira que tinha sempre necessidade de saber mais e mais e mais", conta numa conversa telefónica.

Em 2009 e 2011, participou em ações do Conselho da Europa, em Auschwitz, na Polónia, tendo juntado alunos portugueses e polacos no projeto Auschwitz in 1st. Person/A Letter to Meir Berkovich. "Fui fazendo muitas perguntas ao longo destes 20 anos às quais nunca fui capaz de dar uma resposta que me satisfizesse. Quanto mais estudo, mais interrogações acumulo. Vou conhecendo não só a história das vítimas e daquilo que aconteceu, mas também muito sobre os perpetradores, e intriga-me: como é que pessoas que eram iguais a nós foram capazes de cometer atos tão obscenos." Essa pergunta, a que outros escritores e filósofos já tentaram responder, tornou-se quase uma obsessão: "Não é só uma questão alemã, tem que ver com todos. Estudar o Holocausto e o que aconteceu nos campos de concentração faz-nos não ter tantas certezas sobre o nosso carácter."

Os romances nasceram destas perguntas. "Não sou sequer daquelas pessoas que escreviam poemas na adolescência ou já tinham escrito contos, nada. Acho que o último texto de ficção que tinha escrito deve ter sido na escola primária", conta. "A minha linguagem não é a escrita. Eu gosto de escrever mas gosto muito mais de desenhar." No entanto, quando sentiu necessidade de escrever sobre este assunto decidiu logo que iria ser em forma de romance, porque "é muito mais divertido". E explica: "Tive imenso prazer a escrever ambos os livros, se bem que há sempre momentos difíceis porque escrever um romance exige disciplina e investigação. Mas o meu processo de escrita é um bocadinho uma aventura, gosto do lado lúdico e de me surpreender tanto quanto provavelmente o meu leitor se vai surpreender."

João Pinto Coelho visitou várias vezes os campos de extermínio, falou com sobreviventes e com as pessoas que moram em Oswiécim e que lhe contaram como era a cidade antes de se transformar em Auschwitz. Essa experiência está muito presente em Perguntem a Sarah Gross. Quanto a Os Loucos da Rua Mazur, o autor resume-o assim: "É um livro que nos fala de três pessoas que se encontram no fim da vida para escrever um livro. Só que esse livro, que poderia ser um mero exercício de recapitulação, acaba por se transformar numa arma de arremesso, um instrumento através do qual eles se magoam uns aos outros. E leva-nos também para um acontecimento histórico - um episódio que aconteceu em julho de 1941, numa pequena cidade no Norte da Polónia e que levou a que os cristãos polacos se virassem contra os seus vizinhos de séculos, os judeus, e cometessem alguns atos bárbaros."

O resto se saberá quando o livro for publicado, tal como acontece com todos os vencedores do Prémio Leya. O júri presidido por Manuel Alegre escolheu-o por consenso de entre as cinco obras finalistas que, por sua vez, já tinham sido selecionadas de entre os 400 inéditos apresentados a concurso.

Quanto aos cem mil euros do prémio, João Pinto Coelho tenta "não pensar muito nisso" nem em como podem mudar a sua vida. Neste momento, admite, "já não era capaz de viver sem ter aquela vida paralela" que o acompanha nas viagens de carro. E assim lá se se vai convencendo de que se calhar é mesmo um escritor. "Ainda estou a tentar perceber o que é que sou no mundo da escrita. Definitivamente, quero continuar a escrever mas talvez já não sobre este tema. Mas vamos ver o que vai acontecer, com humildade e sem medo de trabalhar."

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