Prédio Coutinho. São os mais velhos quem faz a resistência à demolição
Manuela Cunha conhece bem o apartamento do Prédio Coutinho, em Viana do Castelo, onde os pais permanecem desde segunda-feira, sem vontade de sair. "Tenho 57 anos e saí daqui há dez. Passei ali grande parte da minha vida, com os meus pais e a minha irmã", conta, preocupada com a estado de saúde dos pais Maria e Armando, ambos com 77 anos. Esteve com eles até quarta-feira. "Saí e já não me deixaram voltar a entrar." A meio da tarde de sexta-feira já não conseguia falar com os familiares - não havia como carregar as baterias dos telemóveis. Sem água, gás e energia elétrica, a vida no interior das seis frações do Edifício Jardim, o nome oficial do Prédio Coutinho, é cada vez mais difícil. O último recado da mãe de Manuela tinha sido para irem buscar a carne que tinha armazenada. Estava a estragar-se porque o frigorífico já não funcionava sem energia elétrica.
Neste momento, Manuela diria aos pais para saírem. Com o início, esta sexta-feira, dos trabalhos de demolição, nos apartamentos contíguos aos que estão ainda ocupados, numa estratégia da VianaPolis que é vista como uma forma de pressão, o barulho foi intenso. "Aqui ouve-se este martelar, imagine lá dentro. Por mim saíam e acaba isto", desabafa ao DN, para logo explicar o que o move os pais. Por um lado, "compraram o apartamento logo no início", ainda na década de 1970. "São muitos anos e, para pessoas como os meus pais, sair daqui é como recomeçar do zero. Com esta idade, não aceitam isso. São antigos resistentes." Mas terá de haver uma saída? "Se a polícia os for buscar, eles saem."
Não é por acaso que os nove resistentes no prédio são quase todos idosos, diz Manuela Cunha, rodeada de tios e primos que foram dar força aos familiares. "Isto é pior que estar numa prisão", criticava uma familiar enquanto acenava para a janela do segundo andar onde o casal dava sinais de vida e até de boa disposição. Em duas janelas do prédio, esvoaçam bandeiras da Colômbia. "É parecida com a da Venezuela e quer mostrar que isto já parece a crise da Venezuela." Entre os resistentes no prédio, há o caso de Francisco Rocha, 73 anos, ex-emigrante em França durante quatro décadas e que contesta o baixo valor de indemnização que lhe é proposto. São cerca de 200 mil euros, quando afirma que o apartamento vale 400 mil. Também o coronel Santos, um antigo comandante da PSP, resiste com mais de 80 anos. Tal como o senhor Agostinho, 89 anos, que tem a mulher internada.
Manuela Cunha admite que, além desta motivação pessoal destas pessoas, há ainda a questão da indemnização. A sociedade VianaPolis, que foi criada em 2000 para gerir o programa Polis na cidade, incluindo a demolição, agora denominada desconstrução, oferece até "200 mil e picos euros". Manuela diz que as avaliações de um apartamento como o dos pais naquela zona da cidade apontam para valores acima dos 400 mil euros." É uma queixa que se estende a outros moradores. Das 105 frações deste prédio que começou a ser habitado em 1973 - o primeiro morador foi Fernando Coutinho, o antigo emigrante no Zaire e na Rodésia, que construiu o polémico edifício e que acabou por lhe dar o nome que agora está nas bocas do país - restam então seis habitadas. Mas há outras, sem habitantes, cujo processo ainda não está fechado.
É o caso de José Luís Manso Preto. Com a irmã, é herdeiro de uma fração onde os pais residiram até à morte. "Fomos a segunda família a ir viver para o Prédio Coutinho, em 1973. Os meus pais morreram ali, ele com 92 anos e a minha mãe com 89. Cresci no prédio e compreendo estes moradores. São todos idosos e viveram ali uma boa parte das suas vidas. Assisti, enquanto jovem, ao espírito familiar que existia. Todos se conheciam e são como uma grande família. O meu pai meteu a SportTV e os vizinhos juntavam-se no apartamento a ver o futebol. Eram dez casais, às vezes. Era esse ambiente que os meus pais não queriam perder e nunca aceitaram sair", contou este jornalista, residente em Caminha que hoje é herdeiro e participou nas reuniões dos moradores, até à passada segunda-feira, dia em que a ação de despejo foi levada a cabo.
Contesta assim que o processo se resuma a estes habitantes. "Apesar do apartamento em que sou um dos herdeiros estar vazio, o processo ainda não está fechado. Não houve ainda indemnização e conheço outros casos idênticos. Ao longo dos anos, houve pessoas que morreram e os filhos são herdeiros, como é o meu caso, Outros moradores não resistiram à pressão, psicológica e financeira. Sim, porque a VianaPolis não paga custas judiciais e nós gastamos muito dinheiro nos tribunais, Isto desgasta muito e as pessoas foram cedendo."
Sem negar que o prédio tem uma volumetria inadequada, Manso Preto recorda que esta resistência resulta muito da falta de diálogo que a sociedade, detida em 60% pelo Estado e em 40% pela Câmara Municipal, evidenciou desde o início, em 2000. "A demolição chegou ao conhecimento dos moradores pela comunicação social, com Defensor Moura na Câmara e José Sócrates como ministro do Ambiente. Nunca houve uma reunião, a decisão estava tomada. Foi tudo muito mal conduzido", critica. Não tem dúvidas que o prédio irá mesmo abaixo. "Mas o que estão a fazer é desumano. Conheço bem todos os que ali resistem. São pessoas com idade muito avançada, a rondar os 80 anos, a viver sem luz, sem água, e a não poderem receber alimentos."
Os advogados dos moradores estiveram impedidos de aceder ao prédio, o que só conseguiram ao final do dia de sexta-feira, após o autarca de Viana do Castelo ter visitado os habitantes. Francisco Vellozo Ferreira disse ao DN que para os moradores "a questão não é quantitativa", isto é não depende dos valores de indemnização". Entendem que "têm direito a manter as suas casas e não desistem", adiantou o advogado, insistindo que, ao contrário do que diz a VianaPolis o processo de expropriação, não está fechado. "Foi por isso que temos uma ação judicial e uma providência cautelar." Ao longo dos anos, Vellozo Ferreira foi vendo moradores aceitando as propostas da VianaPolis. "Cada caso é um caso. Houve quem mudasse de opinião, com o tempo, outros não."
Quando o advogado falava, José Maria Costa, presidente da Câmara, entrava no edifício. Foi, pela primeira vez desde segunda-feira e após pedidos de moradores, conversar. Nem todos aceitaram, só o faziam na presença do advogado, impedido de entrar. Manuela Cunha conseguiu entrar. A mãe insistiu e o autarca acedeu. Quando saíram, José Maria Costa anunciou havia um princípio de acordo, algo indefinido. Mas assumia que os outros não aceitaram ainda sair.
Foi uma "última tentativa para que saiam com dignidade", disse o autarca, sem nunca concretizar se irá avançar para uma saída à força. Prometeu que iria reunir com os advogados, após estes falarem os moradores, para tentar chegar a uma solução. José Maria Costa afirma que não há volta a dar, "as 105 frações são todas da VianaPolis", apesar de ainda questões pendentes com as indemnizações. "A situação é irreversível. O prédio não tem condições de habitabilidade, é do Estado e as pessoas estão a ocupar ilegalmente. Estamos a esgotar todas as formas, a fazer tudo ao alcance para terminar isto", afirmou, à saída do prédio onde agentes da PSP e seguranças privados controlam os acessos.
Depois, Francisco Vellozo Pereira e Magalhães Sant'Ana puderam finalmente voltar a falar com os seus clientes. Antes, criticaram forma com a Câmara e a VianaPolis estão a lidar com a situação. Magalhães Sant'Ana já tinha anunciado que iriam apresentar uma queixa na Ordem dos Advogados por ter sido "impedido de exercer o mandato".
O Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados já disse ser "intolerável" que advogados sejam impedidos de contactar com os constituintes. "São de repudiar quaisquer pronúncias de entidades públicas que tenham o intuito de condicionar ou restringir a liberdade da advocacia, de que são exemplo flagrante as declarações do Presidente da Câmara Municipal de Viana do Castelo", lê-se num comunicado, em reação a palavras de José Maria Costa que esta semana acusou os advogados de estarem em "claro incumprimento do código de deontologia dos advogados europeus". "Esta postura dos mandatários poderá colocar em risco a saúde e as condições de integridade dos ocupantes e não a da VianaPolis, pelo que caso se venha a verificar alguma situação atrás referida a sociedade ver-se-á obrigada a responsabilizar criminalmente os mandatários", afirmou José Maria Costa.
Ao fim do dia, o impasse mantinha-se. Mas o advogado admitia estar aberta "uma porta de diálogo. Não sabemos onde vai dar mas é positivo." Vellozo Pereira não deixou de criticar o início da demolição. "Foi cirúrgico e com propósitos muito específicos", disse, referindo-se às zonas onde os trabalhos começaram - ao lado dos apartamentos habitados.
No jardim em frente, a concentração de populares é grande. Muitas opiniões, nem sempre coincidentes. Para José, 72 anos, "já é mais uma birra do que mais nada". Outro vianense discorda. "Estão a lutar pelo que é deles. E não desistem, são fortes." Um outro local conta ao DN que o prédio foi um local onde muito trabalhou, na área da construção civil. "Conheço esta gente toda. Ao longo dos anos fiz ali muito trabalho de manutenção. São bons apartamentos, do melhor, e viviam ali mais de 200 pessoas", diz, sem querer que o seu nome seja divulgado. "Isto divide muito as pessoas, não quero problemas." Com o processo de demolição iniciado em 200, passou a participar nas mudanças. "Há mais de dez anos fiz mudanças de muita gente para os dois edifícios onde foram realojados. Aqueles que iam saindo. Compreendo a posição desta gente mas já deviam ter percebido que ia acabar desta maneira. Vão ter que sair."
É o que diz o ministro do Ambiente. À questão sobre se é um abuso da Sociedade VianaPolis deixar os últimos nove residentes daquele prédio em Viana do Castelo sem gás, luz e água, Matos Fernandes respondeu: "Aqui os abusados somos nós, os poderes públicos, porque [os moradores] há 19 anos que sabem que têm de sair de lá". Acrescentou que "as pessoas não podem estar ali, é um edifício público, que foi expropriado e que tem de começar a ser desconstruído". Matos Fernandes conclui que os moradores "estão a ocupar um espaço que não é deles", estão a "incumprir" uma decisão judicial e "correm o risco de estar a cometer um crime".
No lugar do prédio Coutinho, o Polis prevê a construção do novo mercado municipal de Viana do Castelo. "Há 19 anos que estamos a faltar à palavra aos comerciantes do mercado municipal, que viram o seu mercado demolido e mandados para a periferia da cidade", referiu o ministro do Ambiente. Por isso, insistiu, as pessoas "têm de sair" e o edifício tem de ser demolido, "em prol do interesse público".