Portugal saiu dos diários gráficos dos Urban Sketchers
João Catarino levou "grandes secas" em Fátima quando era miúdo. Cresceu na zona de Ourém e muitos foram os casamentos, batizados e missas a que foi no santuário. Há três anos respondeu a um dos desafios dos Urban Sketchers Portugal, essa (imensa) gente que regista as paisagens e as vivências em desenhos. "Foi através do desenho que eu encontrei um foco para estar em Fátima. Estive particularmente atento ao fenómeno de Fátima, os portugueses e os estrangeiros, os ricos e os pobres, os desenhos ajudaram-me a aproximar-me dessa dimensão."
O desenho que João Catarino fez nessa ocasião, é um dos 254 que convidam a fazer uma viagem diferente pelo país. O livro Portugal pelos Urban Sketchers já começou a chegar às livrarias e é apresentado na próxima sexta-feira, no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa (às 18.30). Junta 90 ilustradores que integram o coletivo Urban Sketchers Portugal, pessoas com as mais variadas formações que partilham um gosto em comum: desenhar in situ. O repto foi lançado pela editora Zest em janeiro de 2016. "Já tínhamos feito o livro de Lisboa [Lisboa pelos Urban Sketchers] com metade dos desenhos deste e correu muito bem. Eles ficaram contentes e a experiência foi tão boa que quisemos repetir", diz Nuno Seabra Lopes. Recebeu perto de mil desenhos. No início tinha pensado fazer a edição com uma centena de desenhos mas o livro "foi crescendo", recorda. A seleção dos trabalhos foi feita pela editora, com o objetivo de ter uma representatividade nacional, com as várias facetas de cada região, e o máximo de desenhadores. A tarefa de escolha não foi fácil e o resultado final surpreendeu o próprio editor. "Se já gostava das imagens de Lisboa, aqui temos imagens ainda mais bonitas, com uma grande riqueza".
Esta não é a primeira viagem de João Catarino vertida em livro. Para o professor de desenho e ilustrador, o desenho "está presente como forma de estar na vida" e nem são precisas grandes viagens. "Não ando à procura de grandes monumentos nem de grandes desenhos. Adapto os desenhos aos lugares, às vezes aos não lugares onde nunca passaríamos nem quereríamos fotografar." Exemplifica: quando vamos na estrada e temos um furo; na espera de um comboio; "As viagens não são os quilómetros, são a predisposição para olhar".
Mário Linhares, professor, diz que não para de chegar gente que se quer juntar a este coletivo e desenhar. "As pessoas vão ganhando essa coragem, vão percebendo que o grupo não é para uma elite", diz ao DN. No blogue onde partilham os desenhos (urbansketchers-portugal.blogspot.pt) há 450 participantes, mas são mais os que desenham em Portugal. Também Mário respondeu ao desafio da Zest e mandou desenhos, "do Alentejo aos Açores". Um deles, meio desarrumado, foi feito em Alhos Vedros. Ri-se. "Foi feito num encontro e estava imenso calor. Na igreja estava fresquinho. Havia vários motivos de interesse separados e fui juntando vários pontos de vista numa página. Não foi a pensar em fazer um desenho bonito, quis registar aqueles momentos".
Foi em 2014 que Alexandra Baptista alterou a relação que tinha com os seus cadernos de desenho, precisamente depois de conhecer Mário Linhares numa viagem à "sua" ilha. Professora de artes visuais, estava habituada a desenhar, mas não assim. Foi nesse ano que recebeu em São Miguel, Açores, uma mini comitiva dos Urban Sketchers e começou a olhar para as coisas de forma diferente. O caderno deixou de ser aquele lugar íntimo e intimista, para ser o sítio onde junta esta outra forma de escrita do quotidiano, ao desenhar in situ - e depois partilhar no blogue. "Esta coisa passa pela necessidade que se tem de escrever por linhas, por traços, por manchas, o que vamos vivenciando, não é algo que as Belas Artes nos ensinem de imediato", diz, pausada, ao telefone para acentuar que "todas as pessoas podem e sabem desenhar" - ideia que, aliás, está na base da filosofia dos Urban Sketchers.
Professora de artes visuais no ensino secundário, Alexandra enviou vários desenhos para este livro e o escolhido foi um menos óbvio: uma paisagem em Santo António além Capelas, na costa norte de São Miguel. "É um sítio onde raramente passo, é sempre diferente, mostra a nossa relação com a geografia", conta. É um desenho "desabitado", diz referindo-se à preocupação que tem em "mostrar pessoas".
Fernanda Lamelas é arquiteta e tem 13 desenhos no livro. O resultado de muitas viagens pelo país traduzidas em desenhos e um gosto muito particular: desenhar comida. "É uma das coisas que gosto de apreciar, de ver, de comer, é tudo uma estética", acentua. Um desenho seu "guarda os sabores, a companhia, o ambiente, o estar à mesa". Desenha, pois, muito nos restaurantes. Como o Marquês de Marialva, em Cantanhede - cuja generosa tábua de sobremesas se apresenta nas páginas 78 e 79 do livro. Do toucinho do céu ao doce de melão, cada taça sua colher.
"O desenhar quando se passeia pressupõe que quem vai connosco espera", diz Fernanda que assume ter "um apoio familiar" que lhe permite desenhar: o marido partilha com ela este gosto. Demoram-se nas paisagens, à mesa, os desenhos registam os momentos e a arquiteta gosta de falar neles. Como daquele do conjunto de casas em Castelo Branco que deu o mote para várias histórias num curso de escrita criativa que fez e, depois, revelou uma história real: "Partilhei-o no facebook e uma senhora entrou em contacto comigo a dizer que a mãe e a avó tinham nascido na casinha do meio... Mandei-lhe em alta resolução para poder imprimir. Os desenhos têm imensas histórias!"
Com esta edição, surge também a possibilidade de encomendar posters dos desenhos em formato A2 ou A3 a partir de uma plataforma online. O preço ainda não está finalizado mas andará entre os dez e os 15 euros, diz Nuno Seabra Lopes. Outra forma dos desenhos saírem dos caderninhos. Depois desta empreitada, a Zest prepara-se para novos desafios: o Porto visto pelos Urban Sketchers e, mais tarde, um outro regresso a Lisboa. Para já ainda ideias que um dia chegarão ao papel, cheias de pormenores fruto de uma miríade de olhares diferentes.
"Eu posso ter percorrido poucos quilómetros e ter visto pouca coisa mas essa pouca coisa vi muito melhor", diz João Catarino.
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