"Portugal pagou a minha educação e a Inglaterra tem uma pessoa extremamente competente sem investir"
No ano em que foi premiada como Mulher Empreendedora e deixou a presidência da Liga para a Proteção da Natureza (LPN), Alexandra Cunha emigrou para o Reino Unido. Estávamos em 2012, em plena crise económica, e teve de deixar Portugal numa idade em que no seu país já são poucas as oportunidades.
Tinha 50 anos quando concorreu ao funcionalismo público inglês, na entrevista só a questionaram sobre as suas competências. E são muitas, o que lhe deixa um amargo de boca: perceber que recebeu apoios públicos para fazer o mestrado, o doutoramento e projetos de investigação, mas outro país beneficiou desse investimento. Nasceu em Moçambique, Maputo, e veio para Portugal a seguir ao 25 de abril de 1974. Fez o liceu em Portimão, licenciou-se em Biologia na Universidade de Aveiro, doutorou-se em modelação ecológica na Universidade de Auburn, nos Estados Unidos.
Coordenou vários projetos na área da conservação marinha, com destaque para o Life Biomares no Parque Marinho Luiz Saldanha, na Arrábida, e o FindKe, em toda a costa portuguesa. Trabalhou na Universidade do Algarve, onde deu aulas e fez investigação no Centro de Ciências do Mar. Atualmente, vive em Peterborough, no Reino Unido, desenvolvendo a sua investigação no Joint Nature Conservation Committee (JNCC), o comité público que é consultor do governo britânico na área da conservação da natureza.
Bióloga marinha com vários projetos premiados, em especial o Life Biomares, para a preservação das pradarias marinhas, investigadora e ambientalista reconhecida. Todo esse percurso e reconhecimento não foram suficientes para a manter em Portugal?
Obviamente que não foi por falta competência da minha parte, acho eu, mas é pena Portugal não conseguir reter a capacidade científica. Em 2012, durante a crise económica, fui, de facto, um dos cientistas que teve de sair. Muitos projetos de investigação que precisavam de cofinanciamento não tiveram a aprovação do Ministério das Finanças por causa dos constrangimentos financeiros. Trabalhava como bolseira pós-doc [pós doutoramento] em projetos de investigação e tive que procurar emprego fora de Portugal.
Foi uma decisão difícil?
Foi, mas, para ser franca, estava um bocado cansada da situação precária em que sempre me encontrei, a andar de projeto em projeto, como continuam muitos investigadores. Os projetos em que trabalhei foram sempre muito estimulantes, mas chega a um determinado ponto em que uma pessoa pensa que gostava de ter uma situação financeira mais estável e menos precária. Como não o consegui em Portugal, resolvi emigrar.
E não era propriamente uma jovem cientista.
Quando emigrei para Inglaterra já tinha 50 anos, com provas dadas na área científica e como professora. Tinha acabado o doutoramento em 2000 e já estava a trabalhar como investigadora no Centro de Ciências do Mar [Universidade do Algarve] há 12 anos, sempre de projeto em projeto, de bolsa em bolsa. Chega-se aos 50 anos e, de repente, fica-se sem emprego.
Porque é que não pensou em emigrar mais cedo?
Na verdade, era uma coisa que devia pensar há mais tempo. Não pensei porque gostava do que fazia, mas não estou nada arrependida de ter tomado a decisão de emigrar. Vejo os meus colegas que ficaram em Portugal e que continuam a arrastar-se na mesma situação precária.
No entanto, trabalha em biologia marinha e dizem que o mar é o futuro de Portugal. É só teoria?
É difícil de perceber, vejo tanto investimento no mar, leio no jornal as notícias de milhões para o mar, mas a verdade é que os investigadores continuam numa situação precária. Um bom cientista não devia estar a pensar como vai pagar as contas. Há algum progresso mas é sempre para estudantes de doutoramento, não para investigadores. Continua a depender de projetos, agora que trabalho em Inglaterra vejo bem a diferença.
Como é que surgiu o convite para trabalhar em Inglaterra?
Não foi um convite e essa é outra coisa chocante. Concorri a um lugar que estava disponível online, não conhecia absolutamente ninguém em Inglaterra, já tinha 50 anos. Gostaram do meu currículo, vim à entrevista e duas semanas depois recebi um email a dizer que tinha sido aceite para o lugar.
Com essa idade seria difícil em Portugal.
Exatamente, seria impensável, em Inglaterra é normal. Trabalho para o governo inglês, sou funcionária pública, em Portugal alguma vez aos 50 anos se entra para o serviço público? As condições são absolutamente excelentes. É um lugar permanente, o ordenado não é do outro mundo, mas permite-me viver bem. Nunca tive em Portugal os direitos e apoio que dão em Inglaterra a quem trabalha.
Como é que foi a sua adaptação?
Custou-me imenso sair de Portugal, mas a adaptação foi relativamente fácil. Tive que largar as grandes áreas profissionais da minha vida e vim embora sozinha. Mas integrei-me muito facilmente, quando se vai trabalhar para uma organização onde há pessoas que pertencem ao nosso meio, neste caso os biólogos marinhos, é relativamente fácil a adaptação, A maior dificuldade até foi o inglês. Fiz o doutoramento nos Estados Unidos, onde vivi seis anos, mas o inglês dos americanos é muito mais fácil comparado com o inglês dos ingleses. Não só o inglês mas a maneira como lidam em termos profissionais, muitas pinças, muita diplomacia. Os portugueses são um bocado brutos.
Muitas hierarquias?
Sim, mas é uma hierarquia que não é exercida da mesma maneira que em Portugal, é uma hierarquia de responsabilização. Tenho uma line manager, uma pessoa com quem reúno duas vezes por ano, em que definimos as metas de trabalho e que depois me acompanha para ver se estou a atingir os objetivos. Há um diretor da organização, uma estratégia, não posso fazer o que me dá na cabeça, ao contrário do que acontece com as universidades portuguesas, onde não há propriamente uma estratégia que nos diga para que lado ir. Estou a trabalhar numa organização científica que dá apoio ao governo, com independência científica, mas temos que seguir as diretrizes do governo inglês.
É consultora do governo, o seu trabalho tem influência nas políticas públicas?
Sim, por exemplo, o governo inglês quis implementar uma rede de áreas marinhas protegidas e pediu à minha instituição, ao JNCC, um projeto que planeasse essa rede no Reino Unido. Trabalhámos durante dez anos, eu só trabalhei os últimos oito, a equipa tinha especialistas nas espécies, no habitat, em legislação, em contactar grupos de interesse (como pescadores, a indústria do gás e do petróleo, etc.). Entregámos um relatório que explicava onde deveriam criar áreas marinhas protegidas, quais as razões e a maneira de o fazer. Foi o trabalho mais profundo em que participei, além disso, temos várias vezes perguntas do ministério do ambiente sobre o que podem ou não fazer, por exemplo, autorizar a extração de areias nesta área marinha protegida? O JNCC trabalha sobretudo na parte de mar alto, offshores, mas há mais quatro organizações científicas satélite, às quais o governo recorre quando precisa de informação.
O que foi visível com esta pandemia, embora depois tivessem que reformular a forma de atuação.
Sim, mas eles são muito pragmáticos, nunca há uma decisão baseada numa impressão. Eles querem sempre números e dados, é o que chamam evidence, e o que fazemos é procurar evidência científica. Tratar os dados para podermos ter essa informação de base para quando o governo precisar de tomar uma decisão.
É uma equipa multicultural?
Há uma italiana, que já conhecia com o trabalho das pradarias marinhas, uma alemã, um chileno, mas há uma grande mobilidade, as pessoas entram e saem com facilidade. Não é como em Portugal, que se fica num lugar a vida toda. Qualquer dia sou das mais velhas.
Licenciou-se em Biologia na Universidade de Aveiro, como é que passa para as ciências do mar?
Acabei o curso e fiz o estágio nas reservas nas dunas de São Jacinto, em Aveiro, cujo diretor foi destacado para montar o Parque Natural da Ria Formosa e me perguntou se estava interessada em fazer parte da equipa, disse logo que sim. Trabalhei cinco anos no parque, ao mesmo tempo que fiz o mestrado em gestão costeira na Universidade do Algarve e dava aulas de botânica marinha. Em 1996 fui para os EUA fazer o doutoramento, estive lá seis anos. Quando regressei, a investigação estava em crescimento, concorri para o Centro de Investigação em Ciências do Mar e voltei às ciências do mar, mais na área da conservação das pradarias marinhas. Em 2007, iniciei o projeto Life Biomares da Arrábida [Parque Marinho Luiz Saldanha], de replantação das pradarias marinhas.
É quando nasce a iniciativa "Adote uma pradaria marinha".
Foi o resultado desse grande projeto, o Life Biomares. Sabia-se muito pouco das pradarias marinhas em Portugal e explicámos o que eram e a sua importância. Deu lugar a muitos outros projetos, ainda há pouco tempo o ministro do Mar mergulhou nas pradarias do Sado. O que me deixa muito contente, é sinal que deixei a semente e houve pessoas que pegaram no tema e continuam, o que é importante para se conseguir preservar esse habitat.
Qual foi o projeto em que esteve envolvida que gostou mais?
Definitivamente, o Biomares, que coordenei, decorreu entre 2007 e 2012, foi absolutamente fantástico. Envolveu muita gente, não só a parte científica mas toda a conservação do parque marinho da Arrábida.
Um projeto que lhe mereceu o prémio mulher empreendedora, pelas Yves Rocher, em 2012, precisamente no ano em que emigra, curioso, no mínimo.
Exatamente (ri-se). O que é que posso dizer?
Não se sente uma grande frustração?
Sente. Deixa um amargo de boca muito grande. É uma sensação de impotência, não só para mim como para os meus colegas, todas as pessoas estavam com muita pena de eu me vir embora. Eu dizia: "Querem que fique cá e vivo do quê? Do ar? Tenho de ter um ordenado". O meu trabalho foi muito bem reconhecido, não só na área científica como cívica.
Esteve na fundação da Quercus e presidiu à Liga Portuguesa da Natureza.
Também recebi prémios pelo meu trabalho na defesa do ambiente. Por um lado, tenho a minha consciência tranquila, fiz o melhor que pude, mas ao mesmo tempo deixa um certo amargo. O meu país não foi capaz de agarrar essas competências e Inglaterra, que não pagou a minha educação - Portugal pagou a minha educação toda - tem uma pessoa extremamente competente sem ter investido, essa situação sempre me fez muita confusão. Acontece com tantos cientistas, técnicos, que estão a dar cartas em todo o lado, basta falar nos enfermeiros. Trabalhei com colegas que atualmente moram nos EUA, na Austrália, no Dubai, por exemplo, pessoas extremamente competentes e que Portugal não teve a capacidade de os absorver.
Mesmo depois da crise?
Não. É ridículo as condições que oferecem. Eu voltava ao meu país se me oferecessem um trabalho permanente - não vou voltar a ser bolseira e a viver na mesma situação precária - com um ordenado equivalente ao que aqui tenho e com as mesmas condições de trabalho, que acho que nem existem em Portugal.
Está a falar nos meios que tem para trabalhar?
No primeiro dia de trabalho, entregaram-me um computador com o software que precisava e um email de contacto. Qualquer problema que tenha no computador, carrego num botão, eles entram no sistema e resolvem-no, é um luxo, não abdico disto. Quando trabalhava na Universidade do Algarve, o computador era meu, a tentar pôr os softwares que precisava e que eram piratas, cada vez que tinha um vírus tinha que ser eu a ir à loja com o computador.
E em termos de horário de trabalho.
Os ingleses são muito engraçados, fazem 7 horas e 12 m por dia e são exatamente essas horas que trabalham. Quando abro o computador, ponho a hora a que começo e os projetos em que estou a trabalhar. Tenho de dizer, "trabalhei x horas neste projeto, x horas naquele", isso porque o departamento das finanças tem de perceber quantas horas trabalhamos em cada projeto. Se tiver que trabalhar mais horas, isso acumula e depois sou obrigada a descontar essas horas, não é nada bem visto ficar a trabalhar até mais tarde. Ao princípio, ligava o computador em férias e fui chamada a atenção: "Não é aceitável que leia o seu email nas férias". Na Universidade do Algarve não tínhamos horas, fins de semana e não havia propriamente férias, Foi uma grande diferença. Foi outra coisa que aprendi e cheguei à conclusão que não devia ter feito isso. Aqui há uma divisão muito grande entre o que é o trabalho e o que é vida pessoal e respeitam muito essa divisão. O departamento de recursos humanos está sempre em cima de nós.
Mesmo em teletrabalho?
Sim, sim. Tive que dizer como era a minha secretária, a minha postura quando estava à secretária, o speaker estava a custar-me imenso porque não estava habituada e mandaram-me uma coluna para não precisar de o usar. Além de que tenho 30 dias úteis de férias mais os feriados todos.
Essa é uma realidade comum a todos os emigrantes?
Não, reconheço que é uma bolha. Muitos dos emigrantes que vêm trabalhar para Inglaterra vêm em condições péssimas, trabalham para agências de emprego, não têm a mesma proteção que eu. Onde moro, há muitos cafés portugueses e vou sempre lá porque é onde se bebe o único expresso decente. Contam-me as condições em que trabalham, nas fábricas, nas casas de saúde, de apoio a idosos, no campo, as condições são muito difíceis. Sou uma pessoa que tem qualificações e estou a trabalhar para o governo, não é esta a situação da maior parte do portugueses em Inglaterra. As pessoas são superexploradas quando trabalham através das agências de emprego, ganham dinheiro mas trabalham 12/14 horas por dia em condições sub-humanas, em armazéns que estão com 5 graus de temperatura, se estão doentes têm de trabalhar. Há estas duas realidades; quando é através do governo as coisa são excelentes, mas através das agências, para pessoas sem qualificações, é terrível.
O que é mais difícil na vida de emigrante?
É estar no meio da ilha e não ter mar, tenho que viajar uma hora de carro para ver o mar. O mar faz-me muita falta, mas a costa inglesa é muito bonita, só que é longe, e eles não são um país avançado como Portugal, que tem autoestradas por todo o lado (ri-se). Há uma autoestrada que corta o norte do sul da Inglaterra, o resto é tudo estradas nacionais, estreitíssimas, péssimas, nunca mais se chega a lado nenhum, mas as praias são absolutamente fantásticas.
Como é que se matam as saudades da família?
Vou a Portugal quatro vezes por ano, este ano é que ainda não fui por causa da pandemia. Trabalho duas semanas em Portugal e tiro uma semana de férias. O que me tem ajudado muito são as redes sociais.
O Reino Unido é o país com mais mortes por covid-19 por um milhão de habitantes, como é que a população está a viver a situação?
Nós, os funcionários públicos, trabalhamos em casa desde a primeira semana da covid. Tenho uma casa com jardim, à frente um grande terreno, tenho boas condições. Mas só a partir do dia 24 de julho passou a ser obrigatório o uso de máscara em espaços fechados, as pessoas andavam por todo o lado sem máscara, o que me faz confusão, eu usei sempre máscara. Penso que em Portugal as pessoas são mais cuidadosas.
Os cientistas britânicos defendiam inicialmente a imunidade de grupo, o que se revelou uma estratégia errada.
Levaram algum tempo a tomar a decisão do confinamento, foram talvez mal aconselhados, mas também porque é um grande impacto económico. E no Reino Unido é tudo money, money, money. Houve duas semanas em que a coisa podia ter corrido melhor, por falta de informação, porque os modelos que os cientistas usaram não eram os melhores, houve qualquer coisa que se passou, ainda não sei exatamente o quê, que os levou a não tomar medidas imediatas. E, depois, os ingleses são muito orgulhosos, dizem uma coisa que é bite the lips (morder os lábios) e aguentar.
Como vai ser quando vier de férias a Portugal?
O meu pai fez recentemente 90 anos e não fui à festa dele, tínhamos planeado uma festa enorme, a família, os amigos. Tomei a decisão de não ir porque estão todos muito sensíveis à covid e eu não ia de Inglaterra para me juntar às pessoas. Não queria, se alguém ficasse doente, ter a consciência que tinha sido a causadora. Avisei todos que não ia, ficaram tristes, mas não ia ficar no jardim, de máscara, sem poder abraçar o meu pai. No dia 1 de agosto, vou 15 dias de quarentena para casa de uma amiga, no final, faço o teste e se der negativo vou passar 15 dias com os meus pais. Fico a trabalhar na casa deles, ou na minha em Faro, depende das condições que conseguir. Estou a contar ficar três ou quatro meses, depende também, do que vai acontecer.
O que é que costuma fazer nos tempos livres em Inglaterra?
Ia a Londres muitas vezes, uma vez por mês, a um concerto, teatro e mesmo aqui em Peterborough, apesar de ser uma cidade secundária, há muita atividade cultural. Faço muito outdoors, passeios pedestres e remo. Como não tenho mar, foi o que achei mais parecido com atividades marítimas, ao ar livre, ando muito sempre que posso.
Precisaria de um ordenado muito maior para regressar a Portugal?
Não é só uma questão de dinheiro, é uma questão da organização, da segurança, da maneira como as pessoas trabalham, gosto muito da maneira de trabalhar dos ingleses, as coisas funcionam. Agora, tem um peso emocional e afetivo muito grande. Portugal é o meu país, onde estão as pessoas com quem trabalhei, a família - duas filhas já crescidas - tenho os meus velhotes no Algarve. Teria de pensar muito bem, mas acho que não iria, Há uma responsabilidade pelo trabalhador, pela pessoa que trabalha, e a maneira como as coisa funcionam. Todas as semanas, o diretor desta organização reúne com toda a gente. Somos 200, reunimos todas as quartas-feiras, ele explica a situação e depois responde a perguntas. Nunca vi isto em Portugal. No Centro de Ciências do Mar, alguma vez o diretor se senta com os investigadores a conversar sobre o que vamos fazer, qual é a estratégia, o que andam a fazer, quais são as dificuldades? Nunca me aconteceu. Abracei esta cultura.