"Portugal está muito à frente na mobilidade sustentável"
Encontramo-nos no Sud Lisboa com a mobilidade à mesa. Numa altura em que as preocupações ambientais estão na ordem do dia e os transportes estão no centro de uma verdadeira revolução, ao almoço, o responsável em Portugal por uma das marcas que mais tem crescido na venda de elétricos explica a mudança de paradigma.
"Ninguém podia pensar que esta transformação fosse acelerar da forma extraordinária a que temos assistido", confessa António Melica, italiano de Roma que se fixou em Lisboa aos comandos da Nissan. "Nós entrámos na mobilidade elétrica em 2010, quando lançámos o primeiro veículo 100% elétrico produzido em massa, e em sete anos vendemos mil carros em Portugal. Neste ano, em apenas sete meses ultrapassámos essa fasquia."
Com o cesto de pães e o azeite para mergulhá-los à frente, António vai-me guiando pelo seu percurso -- que, inevitavelmente tria de vir dar ao país que adotou como seu: "onde é que se vive tão bem como aqui?!" -- e pelo caminho que a marca que representa tem feito. Mas sobretudo pela extraordinária evolução que os veículos elétricos têm feito nos últimos anos, nomeadamente ao nível da autonomia das baterias e dos preços, tornando-se uma solução cada vez mais procurada por uma geração progressivamente preocupada com a sua pegada ambiental.
"A questão é que, havendo procura, a oferta aparece. E como a procura subiu muito nos últimos anos, a tecnologia evoluiu mais e mais rapidamente. Sabemos por experiência que havia muitos consumidores que só estavam à espera de baterias capazes de aguentar mais para se virarem para um elétrico e agora já somos capazes se superar esse desafio. Nos nossos Leaf, conseguimos uma autonomia de 280 km em ciclo misto" e isso terá sido determinante para o salto que a Nissan deu aqui no último ano.
"2017 foi um ano recorde em todas as áreas: o volume de vendas cresceu 16%, a quota de mercado mais de 51%, o serviço pós-venda 12%, então é uma altura muito positiva para a Nissan", entusiasma-se António Melica, num português bastante bom mas que que de vez em quando lhe sai atropelado por castelhano (o que se explica pelo período que viveu em Espanha mas também por ser casado com uma argentina que conheceu em Barcelona e com quem tem dois filhos, um rapaz de 4 anos e uma rapariga de 8) e entrecortado de expressões da sua Roma natal. "Temos aqui uma gama de modelos que está muito à medida dos gostos dos portugueses: o crossover Qashqai continua a vender cada vez mais, ao fim de dez anos de vida do modelo, graças às renovações que tem sofrido, e ainda no ano passado fez um novo recorde de vendas, o lançamento do novo Micra foi um sucesso incrível (ficámos em 6.º nesse segmento)... Temos estratégia de marca muito consistente e todos os indicadores estão a crescer. E estamos a implementar programas inovadores incluindo no pós-venda, com todo o atendimento digitalizado, carro de cortesia gratuito sempre que há intervenções, enfim, tudo isto implica mais qualidade e melhor perceção da marca pelo cliente, é diferenciador."
Garante que é por isso que Portugal tem uma opinião da imagem de marca melhor do que a média europeia e isso deixa-o orgulhoso, ainda que prefira repartir os louros com toda a equipa. Tendo levado a vida inteira a trabalhar para a Nissan, sobretudo em marketing -- sua área de formação --, António Melica nem sequer se imagina a levar o seu talento para outras paragens. "Adoro a Nissan. Vi aqui muita coisa diferente em 20 anos, desempenhei funções em onze áreas diferentes, em países distintos e valorizo muito isso. Não há marcas tão dinâmicas assim." Também conta, nessa sua vontade de permanecer, o trabalho que a marca tem vindo a desenvolver na mobilidade elétrica: "Sinto que estou a contribuir para um mundo melhor." E poder fazê-lo em Portugal é um bónus que não despreza.
"Já cá tinha estado como diretor de marketing, em 2005/2006, e adorei. Assim que tive oportunidade de voltar, aceitei." Trocou assim a Suíça, onde estava como diretor de vendas numa das duas sedes europeias da Nissan, por Porto Salvo e está seguro de ter feito bom negócio. "Portugal é o resultado final de um percurso de experiências muito distintas e que fui preparando ao longo da minha carreira. Quero ficar aqui toda a vida! É um país extraordinário, com pessoas ótimas, a marca está muito bem cá e é um mercado muito aberto a inovações. Por exemplo, em termos de mobilidade, Portugal está muito à frente de outros países europeus na procura de carros elétricos."
Feitos os pedidos -- o que pede um romano num restaurante italiano? Neste dia, um lombo di tonno braseado que o Sud apresenta com distinção, mas ficará com alguma curiosidade acerca do meu rotolo di pasta ricotta spinaci, acompanhado com uma imperial bem fresca --, segue a ideia. "Há aqui uma atenção especial pelos elétricos, o que é particularmente interessante para nós, que acabámos de introduzir o novo Leaf no mercado. Se excluirmos os nórdicos, os portugueses são dos clientes mais focados na mobilidade elétrica; para a Nissan, essa área já representa uma fatia de 10% das vendas, e isso também me dá a oportunidade de falar muito do futuro, do que está para vir, não só de gerir o negocio tradicional enquanto diretor-geral da empresa, mas de falar do que vai acontecer. E é um desafio grande."
Neste ano, Portugal está a ser um mercado particularmente expressivo, com 15% das vendas da Nissan a virem já dos elétricos (quase 2 mil Leaf). Enquanto nos ajeitamos com os pratos acabados de chegar, pergunto-lhe se a infraestrutura elétrica em Portugal está preparada para responder a essa evolução que se quer prosseguir em toda a Europa e da qual os portugueses são dos mais entusiastas. Diz-me que o problema não passa tanto pela rede de carregamentos em volume como pelo facto de nem todos os postos funcionarem bem. Mas nada que considere impeditivo: "O que vemos é que em 80% dos casos os clientes carregam o carro em casa, através de homeboxes, não dependem da estrutura pública. Mas essa infraestrutura tem de crescer e já este ano, porque as previsões apontam para que o mercado de elétricos vá duplicar em relação ao ano passado, logo o que era a estrutura suficiente em 2017 rapidamente deixará de chegar."
Vamos avançando nos pratos, que estão bem à altura até do paladar de clientes mais entendidos na cozinha italiana, enquanto me explica que já está a operar-se uma transformação ao nível dos fabricantes, à medida que a procura se transfere para os carros elétricos. As fábricas estão a adaptar-se, o diesel a recuar rapidamente -- sobretudo depois do dieselgate e com as penalizações introduzidas para motores mais poluentes --, a reinventar-se, as marcas a centrar-se noutro tipo de oferta para responder ao desejo dos clientes de optarem por soluções de mobilidade sustentável.
"Nós temos um plano de eletrificação dos carros muito forte. Vamos inovar na gama dos elétricos atuais para nos próximos anos introduzirmos outros modelos: um crossover totalmente elétrico, por exemplo, um e-power (híbrido entre elétrico e tradicional cuja diferenciação vem do facto de a tração ser só elétrica e o motor tradicional servir apenas para alimentação da bateria), que é uma tecnologia que já temos no Japão, no Nissan Note, e que tem imenso sucesso porque tem todas as vantagens da condução e tração elétrica e menos consumo, numa condução mais limpa e sem o problema da recarga. E também vamos introduzir soluções híbridas mais tradicionais em quase toda a gama." Esta aposta clara na eletrificação e na mobilidade sustentável tem um prazo definido: está inscrita no plano estratégico até 2022. "Toda a gama terá soluções elétricas, ainda que mantenhamos motorizações tradicionais a gasolina." Razão pela qual António Melica não hesita em afirmar que a marca está "muito à frente na mobilidade inteligente". "Todas as marcas estão a seguir esse caminho, mas nós estamos mais à frente porque temos o know how de termos lançado o primeiro elétrico há sete ou oito anos."
E Portugal está "bastante avançado em relação a outros países europeus" no que se prende com incentivos para essa resposta mais amiga do ambiente. "Há um incentivo muito forte aqui para as empresas que optem por esses modelos (não pagam IVA, há benefícios no IA, que aqui é muito alto) e só isso ajuda muito, apesar de que a procura aumenta independentemente dos incentivos." E para os comerciais, não deviam começar a ser dados passos no mesmo sentido? António Melica acredita que sim e admite mesmo já ter tido conversas nesse sentido. "É um assunto que temos levado a diferentes instituições, e temos reuniões agendadas, porque a verdade é que estamos todos focados nos veículos de passageiros e esquecemos um pouco os de entregas, por exemplo." A questão, diz, é relevante não só em termos de poluição ambiental como sonora.
Com centros de desenvolvimento em todo o mundo, a marca japonesa tem estado focada no desenvolvimento, mais do que dos carros, de todo o ecossistema elétrico, explica-me Melica quando os pratos já se foram e avançamos para os cafés -- pingado para ele. Nesse caminho, os centros de investigação da Nissan chegaram a soluções que possibilitam a criação de energia através de painéis solares, a armazenagem com baterias em segunda vida e uma estrutura de carregamento baseada numa tecnologia vehicle to grid/home, que permite não apenas retirar como devolver energia à rede. "O condutor de um Nissan pode ser um gestor ativo da energia", simplifica, explicando que a solução ainda não está em fase de implementação porque é preciso normas para vender a energia, já estando porém a avançar alguns projetos-piloto em Inglaterra.
"Um elétrico tem uma carga maior do que precisa diariamente, então posso carregar o carro de noite em casa, ir trabalhar, voltar e na hora de maior preço/utilização alimentar a casa com o carro. Isso permite fazer uma gestão muito mais eficiente e barata da energia."
Isto permite também resolver o problema das baterias -- que têm um período de vida e são grandes poluentes -- através da reciclagem. "As baterias reparam-se e têm essa segunda vida - e nisso também estamos muito avançados, tendo já dado vida a projetos bem interessantes." Um deles está em desenvolvimento com o Teatro Camões, no senido de criar uma economia circular: painéis solares recolhem energia, esta é armazenada em baterias e devolvida através de carregadores a veículos e, no caso, vehicle to theater. O projeto é semelhante a outro que a Nissan instalou no Estádio Axa, em Amesterdão, para torná-lo completamente autónomo e sustentável.
Quanto aos próximos passos da marca, diz-me já com os cafés tomados, além da enorme mudança introduzida pela mobilidade elétrica, a mobilidade autónoma promete dar que falar -- e a Nissan está também a dar passos importantes a esse nível, estando previstos no plano estratégico até 2022 carros completamente autónomos. "É um setor onde queremos ser líderes", admite António Melica, conforme o nosso almoço se aproxima do fim.
"Já temos uma tecnologia que permite melhorar a segurança -- a maioria dos acidentes são causados por erro humano, por isso ter um piloto para nos assistir na condução é uma ajuda importante." Para já, a marca inclui em certos modelos, como o Leaf e o Qashqai, algumas dessas inovações -- o front emergency break, ou uma tecnologia sensitiva que faz soar um alarme ou imobiliza mesmo o carro e liga os quatro piscas caso não sinta as mãos do condutor no volante por mais de quatro segundos, por exemplo --, mas o plano é ir muito mais longe, até soluções de veículos totalmente autónomos. O que não estará longe, tendo em conta que até já se fazem corridas com autónomos: a Fórmula E, na ual a Nissan se prepara para entrar.
Para terminar o nosso encontro, e sem me deixar sequer pensar em pagar o almoço, apesar de todos os protestos, António Melica faz questão de provar as vantagens que durante uma hora colou à performance do carro. O Leaf comporta-se à altura do que o diretor-geral da marca prometeu: "A resposta é muito mais rápida, a aceleração fantástica e por ser automático tem maior aderência ao piso e mais estabilidade. E com esta nova tecnologia que temos, o e-pedal, podemos conduzi-lo usando apenas um pedal -- dependendo da pressão, o carro chega a travar, como se o pedal estivesse diretamente ligado à condução. Além do que tem 380 km de autonomia graças ao sistema de recarga, o que, para um condutor médio, é mais do que precisa para uma semana inteira."
É por demais evidente que António Melica faz o que gosta e acredita na empresa que garante não querer deixar. Se a conversa e o teste automóvel não bastassem, a dificuldade que tem em encontrar resposta para o desafio profissional que lhe falta acaba com as dúvidas. "Gosto muito de gerir um mercado, mais do que fazer uma carreira de sede, gosto de ter impacto direto e de ver os efeitos do que faço, de fazer mais do que perder muito tempo a planear. Sou mais de falar pouco e fazer mais."
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