José Eduardo Franco: "Portugal é um país inviável que sempre se viabilizou"

O país visto pelos olhos do historiador José Eduardo Franco, autor de livros como<em> O mito de Portugal</em>, <em>A Europa ao espelho de Portugal: ideia(s) de Europa na Cultura portuguesa</em> ou o recente <em>História Global de Portugal</em> (em co-autoria com José Pedro Paiva e Carlos Fiolhais). Sobressai a ideia de um Portugal sempre em crise, mas engenhoso e, portanto, capaz de se superar ao longo dos séculos.
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Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Faz sentido o dia nacional ser este, no fundo o da morte do autor da epopeia nacional, e não, por exemplo, o da fundação do país, o da chegada de Vasco da Gama à Índia ou até o da restauração da independência?
Os dias feriados e as datas simbólicas que aqueles evocam constituem uma parte importante da geografia mítica e simbólica de uma nação, de um país. Constituem o mapa do tempo simbólico que destaca os pontos de referência elegidos como marcantes e mais significativos da caminhada histórica de um povo. A sua definição e escolha sempre foram objeto de debates acesos e disputas ideológicas no quadro dos diferentes regimes e contextos culturais. A efeméride em apreço, constituída como data simbólica para celebrar o Portugal na sua dimensão global, o que ficou na Europa e o que saiu para o mundo, é uma definição, reformulada e atualizada (no Estado Novo era o dia da Raça) em contexto da assunção do regime democrático em que hoje felizmente vivemos.

Dos grandes nomes das letras, de Dante a Shakespeare, passando por Cervantes, só o espanhol, que combateu em Lepanto e chegou a estar preso em Argel, teve uma vida aventureira comparável à de Camões, que foi à Índia e à China. O poeta português é, não só pelos Lusíadas, mas até pela sua vida além-mar, um símbolo óbvio da portugalidade?
Faz todo o sentido Camões ser reconhecido como símbolo literário maior, na medida em que representa, pelo seu percurso de vida, o Portugal que se abriu ao mundo e que se estabeleceu nos vários continentes. Camões é o símbolo do Portugal viajante, que sai de si e vai percorrer o mundo à procura de novas possibilidades de realização material, cultural e espiritual. De algum modo, é uma das figuras que marca aquilo que podemos chamar a aurora da globalização, em que o mundo começou, graças às novas rotas abertas pelas viagens marítimas de portugueses e espanhóis, a interagir, a quebrar a sua existência compartimentada e/ou pouco comunicante entre povos, civilizações e culturas de continentes que se desconheciam mutuamente.

Como vê a relação entre Portugal e os povos que foram colonizados? A língua comum e uma certa partilha de culturas é suficiente para apagar traumas de séculos de dominação?
Os processos históricos de assunção, sucessão e queda de impérios são marcados por relações de conflitos, de dominação, de imposição de modelos sociais, linguísticos, religiosos, mas também de interações, interfecundações resultantes dos intercâmbios que se estabelecem. Os que dominam acabam por receber também influências dos povos dominados. O Portugal que partiu em viagens para estabelecer-se comercial, política e religiosamente nos quatro continentes (também tocou as costas da Oceânia) não regressou o mesmo. Portugal destruiu, construiu e reconstruiu por onde passou, como fizeram todos os impérios da história. Nas relações de poder há sempre os dois lados. Portugal passou a fazer parte da história desses povos com tudo o que a história tem de sublime e de miserável. Abriu feridas, deixou traumas e marcas luminosas e com elas também memórias positivas.

Durante seis séculos, Portugal teve um império. O que resta, como legado, é sobretudo a força da língua portuguesa, quase 300 milhões de falantes?
Portugal levou uma língua, multiplicou falantes, enriqueceu outras línguas com alguns dos seus vocábulos, mas também recebeu muitos contributos de outras línguas. Basta consultar os dicionários dos últimos 500 anos e verificaremos facilmente como a nossa língua se enriqueceu com lexemas provindos das diversas línguas com que interagiu. A pele da nossa língua é um eloquente testemunho dessa história de um Portugal que se globalizou. Mas os portugueses (numericamente exíguos em comparação com franceses, espanhóis e ingleses) não só semearam uma língua que, em 500 anos, se tornou uma das mais globais, mas também deixaram património edificado (castelos, igrejas, edifícios públicos...), práticas económicas e agrícolas, sabores gastronómicos, camadas populacionais de descendentes miscigenados, religiosidades (cristianismo e devoção global à Senhora de Fátima), tradições populares (por exemplo, as Festas do Espírito Santo), marcas na toponímia, e, de forma mais intangível, a imagem positiva e negativa de Portugal e dos Portugueses (em alguns lugares, saudade, como em Goa; noutros lugares, saudade, da parte de uns, misturada com crítica acérrima, da parte de outros, como em África e no Brasil).

Nascido como pequeno país europeu há quase 900 anos, é agora que Portugal, findo o Império, finalmente se vê como parte da Europa ou a tentação de procurar outras parcerias continua forte, por vocação ou por necessidade?
Encerrado o ciclo histórico do império, Portugal regressou, em 1975, ao retângulo europeu de onde partiu para o mundo há 500 anos. Sendo um país pequeno e de parcos recursos, sempre precisou, ao longo da sua história, de encontrar o que designo como pontos de fuga que visavam abrir portas para se viabilizar: Oriente, África, Brasil. Então, a porta que estava mais à mão era a Europa comunitária, chamada CEE. Apostou tudo para abrir essa porta que acabou por escancarar-se em 1986 e trazer uma nova era de "ouro do Brasil", agora de cor europeia, com a abundância de fundos europeus para se modernizar. Todavia, a história lembra que Portugal não pode nem deve assentar a sua esperança de sobrevivência num só ponto de fuga. Deve estar sempre, estrategicamente, a ponderar diversificar possibilidades de abrir novas portas para a sua viabilização enquanto país. É essa a lição maior da sua história.

Que pensa da corrente de pensamento que defende uma revisitação crítica da história, ao ponto de se contestar a existência de algumas estátuas e até a pertinência de um museu das Descobertas?
Os museus e os monumentos são formas de tornar presente o acesso democratizado ao conhecimento do passado, a todo o passado. Recorde-se que, por exemplo, o programa museológico da I República incluiu a construção de um museu das Ordens e Congregações Religiosas, que este novo regime tinha acabado de expulsar e proibir em 1910, não porque as queria de regresso, mas porque entendeu a importância da revisitação crítica da sua memória. Sou plenamente favorável à revisitação crítica do passado, mas contra a sua depuração fanática. Estamos num tempo cada vez mais marcado pela disputa das memórias históricas, dando-se-lhes usos políticos e ideológicos. Seria um crime de lesa-cultura querer apagar o passado. Excluir o passado que não nos agrada é contribuir para criar visões parcializadas, geradoras de novos fanatismos. Todos nós, no Ocidente, ficámos chocados com os talibãs e o Daesh a destruir, em nome de uma ideologia fundamentalista, monumentos de civilizações antiquíssimas em Palmira e estátuas de Buda no Afeganistão por serem, justamente, legados civilizacionais que constituem património da humanidade, memória histórica inestimável a preservar. Não podemos, também, deixar de ficar chocados com a ideia defendida por alguns de abater monumentos de um passado, que foi o nosso, só porque representam regimes e ideologias em que já não nos revemos. É também esse mesmo espírito de "talibanismo" cultural muito perigoso e constitui-se como uma outra forma de fundamentalismo ideológico. Cada regime político, cada período cultural elege os seus símbolos e ergue os seus monumentos como lugares de memória. Cabe-nos a nós, hoje, em sociedades democráticas que se consideram mais esclarecidas, revisitar esses monumentos de modo crítico e pedagógico, mas sem incorrer em desejos de depuração que equivaleria a fazer o branqueamento da história. Podemos cuidar e manter esse legado de uma história que nos precedeu, e, naturalmente, erigir, como aconteceu em cada tempo, lugares de memórias alternativos e complementares de acordo com os valores do nosso tempo. Os regimes totalitários e os movimentos religiosos fundamentalistas é que têm por apanágio eliminar e substituir lugares de memória. Em democracia, a perspetiva só pode ser integradora da diferença, respeitadora da diversidade, sob pena de não ser democracia. O tempo democrático é o tempo mais propício à realização plena do ofício da história que é compreender o passado, não julgá-lo, como um tribunal, à luz dos valores do presente. É esta perspetiva que permite integrar a diversidade das memórias do passado, ensinando a revisitá-las criticamente, não para copiar ou imitar, mas também fazer diferente hoje, à luz dos valores que fundam a democracia, para construir um futuro melhor.

Qual a imagem de Portugal hoje no mundo? Tem que ver com o passado ou com o presente?
Estou neste momento a dirigir um projeto com a minha colega Fátima Vieira intitulado "Portugal em jogo de Espelhos", precisamente para aferir as perceções de Portugal nos diferentes países do mundo. O projeto ainda está em fase inicial, mas já podemos antever, pelas pesquisas realizadas, que a imagem de Portugal é plurívoca. Há uma diversidade surpreendente de perceções consoante as épocas históricas, os modos e os processos de relação de Portugal com esses diferentes países. Todavia, contrariamente ao que tendemos a imaginar sobre o que os outros pensam de nós, parece-nos, pelo que nos é dado documentar nesta fase do projeto, que as imagens não são predominantemente negativas. Acreditamos que este projeto, se conseguirmos meios para realizá-lo na totalidade, será muito revelador e completará uma parte importante do entendimento de Portugal a partir do olhar do Outro.

Se tivesse de destacar aquilo que mais identifica Portugal como país, o que diria?
Um país que cai, mas que se levanta sempre. Que perde, mas não desiste de voltar a arriscar, a procurar uma saída. Portugal é um caso de resiliência histórica. Observado e cobiçado, por mar e por terra, por adversários poderosos e territorialmente mais volumosos, tem sabido, durante quase um milénio de história, fazer das suas fraquezas grandezas, unindo-se nos momentos cruciais para não perder a possibilidade de continuar a escrever a sua história em conjunto. É também o país que se valoriza mais quando está fora do que quando está dentro. É certo que, contemporaneamente, temos observado um esforço interno de valorização, a vários níveis, do que é nosso como marca de qualidade (por exemplo, o que é nacional é bom...). Talvez esse novo marketing promocional do que é nosso ajude a superar uma certa baixa autoestima que, desde o século XIX, com a enfatização de um sentimento de decadência, foi inoculada na mentalidade portuguesa. Fabricámos então o mito negativo de um Portugal-cauda-da-Europa de que hoje ainda não nos libertámos totalmente. Importa que ganhemos maior autoestima enquanto país e enquanto povo. Só com uma autoestima mais forte poderemos progredir mais e melhor, fazendo desabrochar os talentos que não nos faltam.

Olivença foi apropriada por Espanha há dois séculos, mas é uma perda nunca reconhecida por Portugal, embora não desperte grandes paixões na opinião pública. Deveria Portugal procurar uma solução com Espanha que acabasse com a indefinição do estatuto da cidade?
A história de longa duração multissecular de relação entre Portugal e Espanha é feita de processos múltiplos de apropriações e cedências de territórios na Europa e no quadro das disputas sucessivas nos territórios ultramarinos. Esta história complexa de disputa territorial foi sendo solucionada por sucessivos tratados entre os dois países. Esses acordos ora resolviam os diferendos provisoriamente, ora eram denunciados e obrigavam a novas negociações. O caso de Olivença acontece num dos contextos mais complexos, mais incertos e mais instáveis da história política portuguesa, o princípio do século XIX e o estado de emergência decorrente das invasões napoleónicas. Houve um tratado, o de Badajoz, logo a 1801, para reconhecer a incorporação de Olivença em Espanha e, poucos anos depois, a sua denúncia e reivindicação da soberania portuguesa sobre este município, mas, a conjuntura de grande fragilidade que se seguiu com a fuga da Corte Portuguesa para o Brasil acabou por deixar Olivença numa espécie de limbo diplomático que se manteve até hoje. Apesar de Espanha ter prometido devolvê-la a Portugal, nunca o fez. Olivença permanece ainda como uma pedra no sapato da nossa relação com Espanha, a que ligamos pouco ou que não requeremos ligar, pois isso implicaria atendermos, se recuássemos no tempo, a outras reivindicações históricas da parte de Espanha e entraríamos num ciclo negocial onde não saberíamos quem teria mais a ganhar. Cabe ao Estado e à diplomacia portuguesa saber se deseja abrir ou não aquilo que pode ser uma caixa de pandora.

É possível dizer que somos um país de sucesso no século XXI que, no entanto, vive esmagado pela comparação permanente com os outros países do continente onde se situa, o mais rico de todos, e com um passado nacional glorioso?
Tenho dito e escrito que Portugal é um país-inviável-que-sempre-se-viabilizou. Se olharmos bem a nossa longa história, Portugal tem sido um país-sempre-em-crise, sendo os períodos de prosperidade uma espécie de intervalos entre crises. No fundo, Portugal é um país em estado de crise. É essa a sua existência mais habitual e é essa a perceção dominante que temos de nós próprios. De algum modo, é também nos momentos de crise aguda em que somos mais engenhosos para encontrarmos pontos de fuga para superar os estados de crise e superar-nos enquanto povo considerado e que se considera pequeno, e vencermos as ameaças à sua sobrevivência que sempre nos espreitaram e nos deixam em estado de alerta. Talvez sejamos um povo que precisa de sobressaltos para deixarmos de viver no passado, ou melhor, acomodados com saudades de um passado imaginado como glorioso, para nos fazer regressar ao presente e olharmos com determinação o futuro que nos cabe a nós, e só a nós, construir.

leonidio.ferreira@dn.pt

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