Portugal dos Pequenitos impede obra crítica do colonialismo

Fundação Byssaia Barreto recusou autorizar filmagens para obra de Vasco Araújo sobre representação de africanos no parque inaugurado em 1940, mas nega tratar-se de censura
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A ideia inicial da peça de Vasco Araújo era encenar um diálogo entre as estátuas de africanos da "secção colonial" do Portugal dos Pequenitos. Intitulada Parque Temático, a peça videográfica visa questionar a forma, sentido e intuito daquela representação de africanos no parque inaugurado em 1940, no auge do Estado Novo e da ideologia colonialista. O texto desse diálogo foi enviado à Fundação Byssaia Barreto, proprietária do Portugal dos Pequenitos (PdosP), com o pedido de autorização para filmar no recinto. Ante a recusa, o projeto foi reformulado: no vídeo, a partir de hoje em exibição no Colégio de Artes da Universidade de Coimbra, a imagem das estátuas é substituída por um ecrã a negro, atravessado por uma lista encarnada. Uma típica representação da ideia de censura, apoiada na exibição das cartas trocadas com a Fundação. Intenção que esta, em resposta ao DN, nega.

"Não está, nem nunca esteve, em causa a recusa à pessoa do artista Vasco Araújo ou ao seu projeto relativo ao colonialismo", diz a Fundação Byssaia Barreto (FBB). O motivo da recusa terá, segundo a FBB, antes a ver com o projeto de "expansão e requalificação do parque", por ocasião dos respetivos 75 anos, e a decisão do seu conselho de administração de "suspender, até ao final do ano, o atendimento de pedidos externos visando quaisquer produções de exploração temática sobre o parque atual, para concentrar a estratégia de comunicação, em exclusivo, na divulgação da nova imagem e do projeto de expansão do PdosP."

A FBB invoca igualmente a "colaboração prestada, ao longo dos anos, às produções literárias, artísticas e académicas, teses de doutoramento, artigos, reportagens e programas televisivos realizados no parque e a partir do parque sempre com total liberdade de criação e produção por parte dos seus autores/produtores."

Certo é que quando Vasco Araújo enviou o pedido, em janeiro, não recebeu sequer resposta; só quando as filmagens foram requeridas em nome da Universidade de Coimbra e respetivo Colégio das Artes, em cujo Laboratório de Curadoria se exibe a exposição em causa (intitulada E daqueles que não queremos saber), surgiu a recusa, sem explicações. "Parece-me absolutamente bizarro darem essa justificação ao jornal quando a mim e à Universidade não deram qualquer explicação", comenta o artista. "E não compreendo a relevância da explicação para justificar o impedimento do meu trabalho. O que me parece é que a Fundação Byssaia Barreto não convive bem com o seu passado de ligação ao regime salazarista e colonial e com o facto de alguém propor uma visão critica do PdosP."

Apesar de no vídeo em exibição utilizar uma técnica associada à denúncia da censura, rejeita o uso da expressão: "Não gosto de usar a palavra censura, porque remete para o que se passou numa época específica, em que havia escrutínio estatal prévio e porque pressupõe uma peça acabada passar pelo crivo e não ser autorizada. Ora o que se passou foi um impedimento de realização de uma obra."

A decisão de não contestar a resposta da FBB foi tomada em conjunto com o responsável pelo mestrado de curadoria do Colégio das Artes, Delfim Sardo. Vasco Araújo decidiu avançar na mesma com a peça, mas, tendo efetuado consultas jurídicas, realizou "que não podia usar as imagens sem autorização, por a FBB ser detentora dos direitos de autor. Resolvi assim fazer a peça ocultando as imagens."

Curiosamente, as estátuas foram desenhadas pelo arquiteto responsável pelo parque, Cassiano Branco, para a Exposição do Mundo Português, e respetiva "secção colonial", a expensas do Estado, e depois, quando a exposição foi desmontada, entregues ao PdosP. O DN perguntou à FBB se na sua origem o parque foi construído inteiramente com fundos privados; a sua resposta elide a questão, referindo apenas que "não recebe qualquer financiamento público para a manutenção e conservação do parque." Mas, numa revista da época, lê-se, como legenda de fotos do PdosP: "O professor Byssaia Barreto da Universidade de Coimbra, um célebre médico e amigo de Salazar , instituiu, com o auxílio do Estado Novo e por meios estranhos e próprios, um exemplar jardim infantil para a juventude, para familiarizar os pequeninos com a História da sua Pátria."

"Tudo é verdadeiro" , lê-se no site do PdosP, numa frase atribuída a Fernando Byssaia Barreto (1886-1974, primeiro presidente da FBB). No mesmo site, o parque é descrito como "retrato vivo da portugalidade e da presença portuguesa no mundo." Vasco Araújo questiona: "Retrato vivo de Portugal, quando estão lá pavilhões de Angola, Macau? Aquilo foi pensado para endoutrinação de crianças. Não haver contextualização nem questionamento é prolongar uma ideia fascista sobre o país e um embuste."

Perguntada sobre essa ausência de problematização , a FBB diz que "o plano, em curso, de expansão e remodelação do parque, centra precisamente no plano da informação e da comunicação um dos seus principais desafios."

[Veja aqui uma visita ao Portugal dos Pequenitos]

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