Pôr-do-Sol. Pureza, Dias e Melo acreditam no nonsense com cultura pop

Manuel Pureza, realizador, Henrique Cardoso Dias, escriba de serviço, e Rui Melo, protagonista e um dos pais da insanidade<em> Pôr-do-Sol</em> chegam ao cinema com a versão de grande ecrã da série que veio para acabar de uma vez por todas com os clichés das telenovelas. O filme chama-se<em> Pôr-do-Sol - O Mistério do Colar de São Cajó</em> e estreia-se para a semana. Os três criadores estão destemidos e acreditam que Portugal vai voltar a perceber a piada satírica.
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O maior OVNI de humor na televisão portuguesa nos últimos anos chamou-se Pôr-do-Sol, criação do argumentista Henrique Cardoso Dias, do ator Rui Melo e do realizador Manuel Pureza. Não há muita volta a dar quanto a isso, é um facto: correu bem, deu audiências à RTP, fez humor com inteligência e achincalhou com piada as fórmulas das novelas nacionais para as quais já ninguém tem paciência. A saga da família Bourbon de Linhaça, agrobetos ribatejanos, que têm o império das cerejas em Portugal, e cuja a disfuncionalidade apodera-se de elementos clichés como filhos abandonados, segredos de alcova e vilões com tiques exagerados. Ao mesmo tempo, empodera a questão da luta de classes e ainda faz a ponte entre a sociedade rural e a urbana. Teve duas temporadas (a primeira sátira feroz às realizações das novelas e a segunda a gozar abertamente com o formato das séries) e fez sobretudo furor na RTP Play, conseguindo depois os favores de uma geração nas redes sociais.

Um caso que fez com que a Netflix depois a adquirisse e chegasse mesmo ao top das mais vistas. Tudo isto também com um fenómeno dentro do fenómeno: uma banda falsa chamada Jesus Quisto, onde o vocalista é um dos protagonistas e na qual o conceito "tão mau que é bom" é levado ao ponto mais radical imaginável. Nem de propósito, já tiveram concertos nos Coliseus de Lisboa e Porto e o seu playback total chamou uma multidão ao último NOS Alive.

Depois de a equipa ter anunciado que não se ia vender para sequelas - o acabar em alta era um desejo dos criadores - um último desplante: um filme para as salas (mas que no cartaz já tem o logo da Prime da Amazon, atual residência da série). Mas a ideia era não ser mais do mesmo: a intriga que os espectadores de salas de centro comercial vão ver não é uma continuação, mas sim uma prequela e a troça passa da televisão para os lugares comuns do cinema, um spoof movie com os mesmos personagens antes de serem quem nós conhecemos e com uma variação de fantasia que recua milhares de anos, mete feiticeiros, naus, efeitos visuais e os originais Linhaça de Bourbon a contas com uma maldição de um colar que acaba por ser logo roubado no começo da história de um banco de luxo no Ribatejo.

Numa mesa de um restaurante em plena rua de um dos décors mais castiços do filme e da série, no coração da Madragoa, o trio dos criadores não sabe bem justificar o sucesso desta "marca". Ainda assim, o argumentista Henrique Dias tem uma teoria: "talvez por termos feito uma coisa colaborativa, ou seja, eu sou o responsável pelo texto mas o Manuel Pureza e o Rui Melo dão montes de inputs. Encontrámos entre os três um crivo. Mas não somos assim tão fantásticos: tivemos é a sorte de a RTP nos dizer para fazer como bem entendermos. Nunca tivemos um diretor de programas, um produtor a dizer façam isto ou aquilo! Tenho a certeza que em Portugal há mais gente que se fizer como entende e se não for influenciada, acabará por ter produtos muito melhores". E Pureza acrescenta: "tínhamos um compromisso desde a primeira hora: não facilitar nem tornar isto num conjunto de piadas fáceis. Agora, para o filme a ideia foi tentar algo francamente diferente e que o espectador sinta que é um passo em frente do ponto de vista da montagem, fotografia e da banda-sonora. Queremos que continue a ser um desafio, tanto para nós como para quem o vá ver aos cinemas. Isto não é uma continuação da série nem uma procrastinação do final. Aliás, o nosso final de arromba era conseguirmos uma reinvenção, mantendo o cunho possível Pôr-do-Sol - o que seria um filme Pôr-do-Sol? Isto! Os códigos e as personagens estão lá, mesmo com o tempo a voltar atrás".

E uma coisa é certa: os tais 1 milhão e meio de cliques na RTP Play são um reflexo que a cultura pop em Portugal tem mais força do que uma certa elite opinante pensa. E desta feita há referências a filmes como Laranja Mecânica ou O Senhor dos Anéis mas também ao nosso star system, de Bárbara Tinoco a Pedro Granger, são muitos que levam com o efeito de paródia, ou seja, o efeito de memes da internet que se sente vai funcionar a favor desta transposição para o mercado das salas. Esse efeito da promoção nas redes é um aliado desta forma de humor e Rui Melo, o homem que ficou famoso por partir copos de whisky, lembra: "não controlámos nada disso, mas beneficiámos". "As frases e as piadas tornaram-se tão populares e boas porque foram exploradas para um universo que normalmente ninguém explora, isto é, as referências pop. Porque é que em Portugal não se fazia isso?", completa o argumentista.

Entre estes três senhores há um sorriso que indicia esperança num sucesso de bilheteiras. E a proximidade com o vendaval Barbie, de Greta Gerwig, pode ser benéfica, sendo que a irreverência do marketing do filme também tem puxado memes com referência ao êxito da Warner. Mas os sorrisos entre este gangue da comédia de gozo satírico também vêm do facto de entre eles as piadas surtirem efeito. Eles riem-se do que cada um diz, divertem-se. Isso é importante, conforme admitem: "isso é o fundamental e não ter medo de ser silly".

Quer na série, quer agora no filme, o universo Pôr-do-Sol tem delírios "meta" quase em jeito de provocação ou gozo ao lugar do espectador. A "acrobacia" dos Jesus Quisto no Festival da Canção ou no apoio à seleção masculina de futebol é Spinal Tap à portuguesa sem medos e pronta a deixar muita gente ofendida ou, no mínimo, à toa. "Mas não se trata de gozar com as pessoas, não queremos fazer bullying ao espectador. Queremos jogar com alguns contextos, isso sim", diz Rui Melo. "E fazemos algum espelho ou sofá virado ao espectador ao perguntar se ainda alguém acredita que Pêpê Rapazote é filho da Cucha Carvalheiro nas novelas. As pessoas em casa estão a rever-se nas novelas", avança Pureza, mas Dias remata: "com o Pôr-do-Sol, as pessoas que viam novelas perceberam o ridículo desse produto".

Se há bicadas à vaidade de certos atores, também há uma bicada ao possível ego do realizador, cujo último filme, Linhas de Sangue, não correu bem. Tratava-se de uma comédia de género de terror, co-realizada por Sérgio Graciano, por estes dias ligado ao cinema mais autoral com Os Papéis do Inglês, adaptação de um livro de Ruy Duarte Carvalho. E se Pôr-do-Sol - O Mistério do Colar de São Cajó e a sua montanha de entusiasmo for um novo Linhas de Sangue? "O Linhas de Sangue não tinha este lastro, atenção! Nos últimos tempos, nenhuma série de humor deixou este legado. O Linhas de Sangue mostrou-me que nem toda a gente que diz que tem sentido de humor para cinema público está disponível para ver um filme de género em Portugal", responde de forma séria.

Dias, que é também o argumentista de uma lamentável comédia chamada Curral de Moinas - Os Banqueiros do Povo, de Miguel Cadilhe, sucesso importante nos centros comerciais, esteve em destaque em junho nos Encontros do Cinema Português quando respondeu forte e feio a Paulo Branco num debate sobre a eterna questão da divisão entre cinema de autor e filmes "comerciais". Ter-se-à arrependido? "O que se passa é que não tenho paciência para o Paulo Branco! Não tenho paciência para aquele tipo de pessoa mal-educada e agressiva. Não foi a primeira vez naqueles encontros que disse que os dados estavam errados e que não faz sentido estarem a discutir aquilo. Acho horrível aquela personalidade desagradável! Representa uma série de coisas que estão erradas no cinema português. Mas claro que percebo que muitos tenham urticária em relação ao Curral de Moinas! Estou perfeitamente na boa com o meu nome ligado àquilo: Curral de Moinas é um tipo de cinema privado feito sem grandes condições técnicas e artísticas, mas este Pôr-do-Sol já estamos num outro patamar, cinema de entretenimento feito com outra qualidade artística e técnica. Nunca irei ter vergonha do Curral de Moinas, gosto e defendo o popular! Detesto é o popularucho!".

E em maré de provocações, será aqui que o mano vilão interpretado por Rui Melo perde alguma da piada devido às diferenças de timming entre a ficção televisiva e o cinema? O visado responde de rajada: "senti essa diferença logo na escrita. A abordagem àquela personagem teria que ser diferente e o seu conflito interior é muito maior. Tentei abordá-la de forma mais lenta, com outro tom e recorte".

Rui Melo atesta o grau de loucura que a série teve em jovens: "no outro dia apanhei um tipo que tinha a minha cara tatuada na sua perna..." "Toda essa loucura assinala a maneira séria como abordámos a série!", acredita Manuel Pureza, alguém que durante anos realizava telenovelas. E se houver o tal prémio de um reconhecimento verdadeiramente popular nas salas, é sinal de que o cinema português, se quiser fazer comédias, talvez já não precise da bitola dos Curral de Moinas ou dos Duros de Roer - "isso seria muito fixe, abriria portas até para outros. Para haver Pôr-do-Sol a porta foi aberta pelo Solnado, Nicolau Breyner, Herman, Gato Fedorento. Essas pessoas abanaram a comédia, nós não. Na verdade, o nosso nonsense não foi inovador. Afinal, o Solnado e o Herman faziam nonsense. Nós apenas estamos a lembrar que isto resulta, que não é intelectual, é apenas absurdo e brincar com o etéreo", exclamam convictamente.

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