Polícia branco contra cidadãos negros

<em>Queen & Slim</em> encena uma história que começa numa cidade dos EUA, numa cena de violência entre um polícia branco e um par afro-americano. Realizado pela estreante Melina Matsoukas, nele ecoam muitos dramas do presente dos EUA.
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Eis um filme de atualidade automática, convulsiva e perturbante: disponível nos videoclubes virtuais, Queen & Slim é uma produção de um grande estúdio dos EUA (Universal Pictures) que conta uma história cujo motor dramático é a violência de polícias brancos contra cidadãos negros.

Tudo começa numa cidade do estado de Ohio, com o primeiro encontro do par que o título identifica: são afro-americanos, conheceram-se através da internet (na rede Tinder) e vão no carro de Slim. Ele ofereceu-se para levar Queen a casa, mas inadvertidamente comete uma pequena infração de trânsito que atrai a atenção de um polícia... Em boa verdade, não se trata de revelar nada ao leitor: como se pode ver no trailer do filme, em breves momentos, a postura agressiva do polícia transforma uma situação de rotina num foco de tragédia e, ao tentar defender-se, Slim mata o polícia.

Não será preciso evocar a morte de George Floyd (ocorrida em maio deste ano) para sublinhar o imediato efeito simbólico de Queen & Slim: da vida dos cidadãos comuns às discussões em curso no espaço mediático e na cena política, a questão da violência policial contra cidadãos negros atravessa todas as zonas da sociedade americana, reavaliando o presente, lançando interrogações para o futuro, ao mesmo tempo que promove a necessária atualização de muitas memórias históricas.

Ao mesmo tempo, o filme realizado pela estreante Melina Matsoukas - com grande experiência na área dos telediscos, tendo trabalhado, por exemplo, com Beyoncé, Lady Gaga e Rihanna - envolve uma salutar contenção metafórica. Não se trata, de facto, de elaborar uma "tese" generalista ou abstrata sobre o que quer que seja, antes contar uma história que vive, antes do mais, da singularidade das suas personagens.

Queen & Slim evolui num registo próximo de uma certa tradição on the road, com os protagonistas a caminho da Florida, tentando montar uma fuga para Cuba. Aliás, os intérpretes principais são impecáveis na exploração dos muitos pormenores afetivos que vão pontuando a sua relação, definindo os impasses e as atribulações da sua involuntária odisseia: ele é Daniel Kaluuya, a figura acossada do excelente Foge (2017), de Jordan Peele; ela é Jodie Turner-Smith, modelo britânica com evidente talento de representação.

Ao longo do caminho, cada um dos seus encontros dá-nos uma perspetiva muito particular de um tecido social pleno de diferenças e contradições, incluindo as precárias condições de vida da maior parte nos lugares que Queen e Slim vão conhecendo. Como uma das personagens sugere, eles definem uma inusitada reencarnação do mito de Bonnie & Clyde (consagrado no admirável filme de 1967, assinado pelo grande, e tão esquecido, Arthur Penn).

Por vezes, Queen & Slim cede a algum esquematismo dramático, como acontece na sequência em que, numa manobra do carro, Slim atinge um homem que, instantaneamente, se revela um "militante" da causa que os foragidos para ele representam. O certo é que, na maior parte das situações, o trabalho de Matsoukas distingue-se pela paciente observação das nuances emocionais das suas personagens, como acontece na belíssima cena em que o par decide visitar um bar à beira da estrada, dançando ao som de blues de uma banda incrível - dir-se-ia uma coleção de zombies felizes por partilhar a energia primitiva da sua música.

* * * Bom

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