Há relatos que ninguém quer ler. Durante anos, ignoram-se os rumores, fecham-se os olhos a todos os sinais, aos alertas mais ou menos evidentes que vão aparecendo. Sabemos que a fama chega com milhões de euros, que os euros atraem interesseiros e que esses podem querer aproveitar-se. Também sabemos que os artistas são dados a excentricidades, loucuras mais ou menos recomendáveis, mas nem por isso, necessariamente, criminosas. Também é sabido que com as figuras mais mediáticas, da música, do cinema ou do desporto, desenvolvemos afinidades, como se fossem velhos amigos, conselheiros ou confidentes. E esses nunca, em cenário algum, cometem atrocidades..Preferimos sempre acreditar que estão a ser vítimas de cabalas, chantagens, conspirações orquestradas por rivais menos talentosos, invejosos, qualquer força obscura serve de justificação. Em caso de dúvida, são "os mass media, que dissecaram tudo para chegar às suas conclusões", o melhor "é esperar pela verdade, no fim", "inocente". Palavras de Michael Jackson depois de ter sido acusado de abuso sexual de menores e sujeito a exames periciais pela polícia norte-americana. Culpado? "Só de ajudar crianças em todo o mundo, de amar crianças de todas idades e cores e de sentir felicidade ao ver os seus sorrisos inocentes." Estávamos em 1993 e sabemos agora que, afinal, a história pode ter sido bem diferente..Rei da pop não foi alcunha atribuída à pressa, não foi fruto de um qualquer Despacito, também não foi uma autoproclamação à moda da Venezuela. Jackson não nasceu estrela, mas antes dos 10 anos, na companhia dos quatro irmãos, já o era..O recorde não é dos Beatles, dos Queen ou dos Pink Floyd. E os campeões de hoje, Adele, Ed Sheeran ou Beyoncé, mais não podem que sonhar com os números que Michael Jackson conseguiu: editado em 1982, Thriller há muito que alcançou a marca dos 66 milhões de cópias vendidas, há muito que é o disco mais vendido de sempre. E nem é a única entrada de Michael Jackson no livro dos recordes Guinness. Era dele a luva mais cara alguma vez leiloada - 420 mil dólares, em 2009, em Nova Iorque -, foi ele quem conseguiu chegar a número 1 dos tops norte-americanos no maior intervalo temporal - entre Got to Be There de 1971 e Hold My Hand em 2011. E se Justin Bieber o destronou ao tornar-se o mais novo de sempre a estrear um single no topo das tabelas de vendas, dificilmente algum dia uma coreografia do jovem norte-americano fará 14 mil dançar sincronizados - isso aconteceu no México, ao som de Thriller, em 2009..Sozinho fez-se rei e agora, dez anos passados da sua morte, abeira-se da desgraça. Da Nova Zelândia ao Canadá, passando pela Holanda, estações de rádio tiraram a sua música das playlists e até um museu em Inglaterra mandou recolher a estátua que o homenageava. Também a BBC2 apagou a música de Jackson das suas playlists e dos Simpsons desapareceu o episódio em que Jackson dava voz a um personagem louco com ânsias de ser estrela pop. Tudo por causa de Leaving Neverland, o documentário agora disponível na HBO. Mais um violento alerta, que desta vez o mundo não parece interessado em ignorar. Afinal, o rei ia nu.."Porque não partilhar cama?".As histórias de Wade Robson e James Safechuck são contadas na primeira pessoa. No caso de Safechuck, a gravação de um anúncio da Pepsi; no caso de Robson, a presença em palco na digressão de Bad pela Austrália, em 1988; tinham 10 e 7 anos quando se cruzaram com a maior estrela pop do mundo. Em ambos os casos, Jackson envolveu a família, com convites para viagens, raides às compras e até no pagamento do empréstimo bancário de uma casa. A história do homem de Billie Jean conta-se em milhares, milhões de dólares: 20, no caso do acordo extrajudicial selado em 1994 com a família de Jordan Chandler, que conhecera com 6 anos, e que o acusava de abusos sexuais..Menos de dez anos depois, em 2003, no documentário Living with Michael Jackson, o cantor assumia dormir com Gavin Arvizo; 13 e 44 anos. "Porque não partilhar a tua cama? É a coisa mais adorável de fazer", diz então a Martin Bashir, que estava por detrás da câmara. O processo judicial tornou-se inevitável mas, meses depois, no desfecho de um julgamento com sessões cercadas por fãs, Jackson foi absolvido das 14 acusações de abuso de menores. Uma decisão que fez milhares saírem para a rua a dançar..A Terra do Nunca.Neverland tinha jardim zoológico. Carrosséis e rodas-gigantes. Uma sala de cinema, casas várias, lagos e árvores onde Jackson dizia escrever música. Não faltava uma pista de carros nem a maior estrela de cinema infantil da década, Macaulay Culkin. Ao longo dos anos, o protagonista de Sozinho em Casa manteve a mesma versão: dormiu, mas sem sofrer qualquer abuso. E com Michael, garante, nada mais do que amizade. Outros têm histórias bem diferentes. Como Ronson, no documentário que se estreou na mais recente edição de Sundance, que conta como descobriu a masturbação, o sexo oral e anal a partir dos 7 anos. Ou quando Safechuck lembra o casamento, a brincar, no quarto de Michael, mas com direito a um anel de ouro e diamantes que ainda hoje guarda. Tinha 10 anos..A família do cantor já reagiu ao documentário. Depois de falhadas as tentativas para impedir a emissão do filme, pôs em andamento um processo de indemnização de cem milhões de dólares. Sobre Leaving Neverland, a argumentação é a de que não passa de mais um "assassinato de carácter que Michael Jackson teve de suportar em vida e agora também na morte", além de dar palco a "alegações que supostamente aconteceram há 20 anos e as transforma em factos". Ao mesmo tempo, patrocinado por um dos sobrinhos do cantor, foi lançado um site de apoio - www.mjinnocent.com - com argumentos contra Robson e Safechuck e aos seus discursos marcados por "inconsistências, contradições e completas mentiras". Além disso, é exposto um argumento legal. "Estas alegações foram feitas depois da morte de Michael Jackson. A lei atual não protege os falecidos de difamação e assim Robson e Safechuck são livres de atacar Michael Jackson e fazer as acusações que quiserem, sem medo de repercussões legais", lê-se..Ao jornal The Guardian, Eammon Forde, especialista da indústria musical, explica as repercussões da polémica. "Com estas notícias, vai depender do consumidor. Vão continuar a querer ouvir a sua música? Existirão os fãs mais fiéis que pensam que isto não passa de uma campanha de difamação. Mas os fãs casuais estarão disponíveis para ir ver um musical? Há um número limitado de fãs hardcore que vão ignorar o que o documentário diz, mas são os seguidores flutuantes que tornam estas coisas lucrativas", explica..Jackson não está sozinho na lista de músicos suspeitos de pedofilia e abusos sexuais. Em 1959, Chuck Berry foi preso por passar de Estado com "intenções imorais" na companhia de uma jovem de 14 anos; em 1956 Jerry Lee Lewis, então com 22 anos, casou-se com uma prima de 13; e em 1966, Marvin Gaye perfilhou uma criança de Denise Gordy, de17 anos no momento do nascimento. Mais recentemente, foi R. Kelly quem viu um documentário - Surviving R. Kelly - obrigar o mundo a lembrar-se de que já em 2003 tinha sido acusado por posse de pornografia infantil e que se casara com uma jovem de 15 anos. Hoje está acusado de dez crimes de abuso sexual, três deles com menores..Em Neverland, Jackson sentia-se Peter Pan, o personagem central da decoração da quinta. Recusou-se a crescer e nunca deixou de ter os brinquedos que quis. Dez anos depois da sua morte, a Terra do Nunca continua fechada, vedada até aos fãs, e a estreia na Broadway do musical biográfico Don"t Stop "till You Get Enough foi adiada. Jackson mudou a cor da pele, morreu doente, sozinho, enquanto promovia o que anunciava como os seus últimos concertos. Agora, com Leaving Neverland, há quem defenda que morreu pela segunda vez..1,8 mil milhões de euros ganhos depois da morte.Desde a sua morte - paragem cardíaca supostamente causada pelo excesso de medicação -, a família e gestores do património de Jackson não abrandaram na faturação. A troco de 250 milhões de dólares foi assinado com a Sony o prolongamento do contrato entre ambas as partes e, logo em 2009, foi editado um documentário com os ensaios do espetáculo que preparava quando morreu (Michael Jackson"s This Is It), hoje o filme de concerto mais rentável de sempre. Um ano depois foi editado um disco póstumo (Michael), um jogo para consolas e até houve uma produção do Cirque du Soleil dedicada à sua obra. No total, desde que morreu, segundo o The Guardian, o rendimento foi de 1,8 mil milhões de euros.
Há relatos que ninguém quer ler. Durante anos, ignoram-se os rumores, fecham-se os olhos a todos os sinais, aos alertas mais ou menos evidentes que vão aparecendo. Sabemos que a fama chega com milhões de euros, que os euros atraem interesseiros e que esses podem querer aproveitar-se. Também sabemos que os artistas são dados a excentricidades, loucuras mais ou menos recomendáveis, mas nem por isso, necessariamente, criminosas. Também é sabido que com as figuras mais mediáticas, da música, do cinema ou do desporto, desenvolvemos afinidades, como se fossem velhos amigos, conselheiros ou confidentes. E esses nunca, em cenário algum, cometem atrocidades..Preferimos sempre acreditar que estão a ser vítimas de cabalas, chantagens, conspirações orquestradas por rivais menos talentosos, invejosos, qualquer força obscura serve de justificação. Em caso de dúvida, são "os mass media, que dissecaram tudo para chegar às suas conclusões", o melhor "é esperar pela verdade, no fim", "inocente". Palavras de Michael Jackson depois de ter sido acusado de abuso sexual de menores e sujeito a exames periciais pela polícia norte-americana. Culpado? "Só de ajudar crianças em todo o mundo, de amar crianças de todas idades e cores e de sentir felicidade ao ver os seus sorrisos inocentes." Estávamos em 1993 e sabemos agora que, afinal, a história pode ter sido bem diferente..Rei da pop não foi alcunha atribuída à pressa, não foi fruto de um qualquer Despacito, também não foi uma autoproclamação à moda da Venezuela. Jackson não nasceu estrela, mas antes dos 10 anos, na companhia dos quatro irmãos, já o era..O recorde não é dos Beatles, dos Queen ou dos Pink Floyd. E os campeões de hoje, Adele, Ed Sheeran ou Beyoncé, mais não podem que sonhar com os números que Michael Jackson conseguiu: editado em 1982, Thriller há muito que alcançou a marca dos 66 milhões de cópias vendidas, há muito que é o disco mais vendido de sempre. E nem é a única entrada de Michael Jackson no livro dos recordes Guinness. Era dele a luva mais cara alguma vez leiloada - 420 mil dólares, em 2009, em Nova Iorque -, foi ele quem conseguiu chegar a número 1 dos tops norte-americanos no maior intervalo temporal - entre Got to Be There de 1971 e Hold My Hand em 2011. E se Justin Bieber o destronou ao tornar-se o mais novo de sempre a estrear um single no topo das tabelas de vendas, dificilmente algum dia uma coreografia do jovem norte-americano fará 14 mil dançar sincronizados - isso aconteceu no México, ao som de Thriller, em 2009..Sozinho fez-se rei e agora, dez anos passados da sua morte, abeira-se da desgraça. Da Nova Zelândia ao Canadá, passando pela Holanda, estações de rádio tiraram a sua música das playlists e até um museu em Inglaterra mandou recolher a estátua que o homenageava. Também a BBC2 apagou a música de Jackson das suas playlists e dos Simpsons desapareceu o episódio em que Jackson dava voz a um personagem louco com ânsias de ser estrela pop. Tudo por causa de Leaving Neverland, o documentário agora disponível na HBO. Mais um violento alerta, que desta vez o mundo não parece interessado em ignorar. Afinal, o rei ia nu.."Porque não partilhar cama?".As histórias de Wade Robson e James Safechuck são contadas na primeira pessoa. No caso de Safechuck, a gravação de um anúncio da Pepsi; no caso de Robson, a presença em palco na digressão de Bad pela Austrália, em 1988; tinham 10 e 7 anos quando se cruzaram com a maior estrela pop do mundo. Em ambos os casos, Jackson envolveu a família, com convites para viagens, raides às compras e até no pagamento do empréstimo bancário de uma casa. A história do homem de Billie Jean conta-se em milhares, milhões de dólares: 20, no caso do acordo extrajudicial selado em 1994 com a família de Jordan Chandler, que conhecera com 6 anos, e que o acusava de abusos sexuais..Menos de dez anos depois, em 2003, no documentário Living with Michael Jackson, o cantor assumia dormir com Gavin Arvizo; 13 e 44 anos. "Porque não partilhar a tua cama? É a coisa mais adorável de fazer", diz então a Martin Bashir, que estava por detrás da câmara. O processo judicial tornou-se inevitável mas, meses depois, no desfecho de um julgamento com sessões cercadas por fãs, Jackson foi absolvido das 14 acusações de abuso de menores. Uma decisão que fez milhares saírem para a rua a dançar..A Terra do Nunca.Neverland tinha jardim zoológico. Carrosséis e rodas-gigantes. Uma sala de cinema, casas várias, lagos e árvores onde Jackson dizia escrever música. Não faltava uma pista de carros nem a maior estrela de cinema infantil da década, Macaulay Culkin. Ao longo dos anos, o protagonista de Sozinho em Casa manteve a mesma versão: dormiu, mas sem sofrer qualquer abuso. E com Michael, garante, nada mais do que amizade. Outros têm histórias bem diferentes. Como Ronson, no documentário que se estreou na mais recente edição de Sundance, que conta como descobriu a masturbação, o sexo oral e anal a partir dos 7 anos. Ou quando Safechuck lembra o casamento, a brincar, no quarto de Michael, mas com direito a um anel de ouro e diamantes que ainda hoje guarda. Tinha 10 anos..A família do cantor já reagiu ao documentário. Depois de falhadas as tentativas para impedir a emissão do filme, pôs em andamento um processo de indemnização de cem milhões de dólares. Sobre Leaving Neverland, a argumentação é a de que não passa de mais um "assassinato de carácter que Michael Jackson teve de suportar em vida e agora também na morte", além de dar palco a "alegações que supostamente aconteceram há 20 anos e as transforma em factos". Ao mesmo tempo, patrocinado por um dos sobrinhos do cantor, foi lançado um site de apoio - www.mjinnocent.com - com argumentos contra Robson e Safechuck e aos seus discursos marcados por "inconsistências, contradições e completas mentiras". Além disso, é exposto um argumento legal. "Estas alegações foram feitas depois da morte de Michael Jackson. A lei atual não protege os falecidos de difamação e assim Robson e Safechuck são livres de atacar Michael Jackson e fazer as acusações que quiserem, sem medo de repercussões legais", lê-se..Ao jornal The Guardian, Eammon Forde, especialista da indústria musical, explica as repercussões da polémica. "Com estas notícias, vai depender do consumidor. Vão continuar a querer ouvir a sua música? Existirão os fãs mais fiéis que pensam que isto não passa de uma campanha de difamação. Mas os fãs casuais estarão disponíveis para ir ver um musical? Há um número limitado de fãs hardcore que vão ignorar o que o documentário diz, mas são os seguidores flutuantes que tornam estas coisas lucrativas", explica..Jackson não está sozinho na lista de músicos suspeitos de pedofilia e abusos sexuais. Em 1959, Chuck Berry foi preso por passar de Estado com "intenções imorais" na companhia de uma jovem de 14 anos; em 1956 Jerry Lee Lewis, então com 22 anos, casou-se com uma prima de 13; e em 1966, Marvin Gaye perfilhou uma criança de Denise Gordy, de17 anos no momento do nascimento. Mais recentemente, foi R. Kelly quem viu um documentário - Surviving R. Kelly - obrigar o mundo a lembrar-se de que já em 2003 tinha sido acusado por posse de pornografia infantil e que se casara com uma jovem de 15 anos. Hoje está acusado de dez crimes de abuso sexual, três deles com menores..Em Neverland, Jackson sentia-se Peter Pan, o personagem central da decoração da quinta. Recusou-se a crescer e nunca deixou de ter os brinquedos que quis. Dez anos depois da sua morte, a Terra do Nunca continua fechada, vedada até aos fãs, e a estreia na Broadway do musical biográfico Don"t Stop "till You Get Enough foi adiada. Jackson mudou a cor da pele, morreu doente, sozinho, enquanto promovia o que anunciava como os seus últimos concertos. Agora, com Leaving Neverland, há quem defenda que morreu pela segunda vez..1,8 mil milhões de euros ganhos depois da morte.Desde a sua morte - paragem cardíaca supostamente causada pelo excesso de medicação -, a família e gestores do património de Jackson não abrandaram na faturação. A troco de 250 milhões de dólares foi assinado com a Sony o prolongamento do contrato entre ambas as partes e, logo em 2009, foi editado um documentário com os ensaios do espetáculo que preparava quando morreu (Michael Jackson"s This Is It), hoje o filme de concerto mais rentável de sempre. Um ano depois foi editado um disco póstumo (Michael), um jogo para consolas e até houve uma produção do Cirque du Soleil dedicada à sua obra. No total, desde que morreu, segundo o The Guardian, o rendimento foi de 1,8 mil milhões de euros.