Nos quase 25 anos de carreira como treinador, passaram pelas mãos de Luís Gonçalves alguns dos maiores nomes do futebol português da atualidade: Cristiano Ronaldo, Rui Patrício, Cédric Soares, Ricardo Quaresma, Adrien, entre outros, na formação dos leões. Atualmente, depois de passagens por Sporting (12 épocas), FC Porto e seleção de Moçambique, aventurou-se na China, onde comanda a seleção de sub-16.."Está a ser uma experiência muito rica e interessante, quer do ponto de vista pessoal quer do ponto de vista profissional, pois tem contribuído para o meu crescimento e enriquecimento como treinador e como pessoa. Estamos a falar de uma cultura completamente diferente da nossa e é necessária alguma adaptação", contou ao DN o treinador, revelando que não teve grandes dificuldades em se adaptar e que contou com a colaboração de Tiago Capaz, o seu adjunto, que já estava na China quando Luís se aventurou no país..O desafio "é enorme e aliciante", segundo o técnico português: "Estamos a fazer um trabalho de base para o futuro, a trabalhar com a geração de 2003. Temos de fazer um trabalho de observação de jogos constante e muito scouting para selecionar os melhores jogadores para a seleção de sub-16, no sentido de quando chegar 2021 e a qualificação para os jogos asiáticos estarmos preparados para a qualificação.".Escolher apenas 18 ou 23 num país com 1,3 mil milhões de habitantes é, muitas vezes, uma "tarefa difícil" e "ingrata". Ainda mais porque só há dois anos existem campeonatos nacionais em todos os escalões. Antes a seleção era feita em escolas e academias. Menos mal, que a China tem agora um programa de monitorização de jogos invejável. "Eles gravam os jogos todos e depois disponibilizam-nos. Além disso, temos acesso ao calendário e escolhemos os jogos que queremos observar diretamente. Há tempos estivemos numa localidade a observador um torneio e vimos 15 jogos numa semana. É um trabalho árduo até porque não havia tradição de scouting organizado", revelou o técnico que desde que chegou já fez cinco estágios e observou quase uma centena de jogadores..Futebol como disciplina obrigatória.A China quer ser uma potência no futebol e está a trabalhar para isso. "Eles estão a investir muito com o objetivo de se candidatarem e receberem o mundial 2030. Nas escolas todas as crianças têm uma hora de futebol como disciplina obrigatória e há uma propaganda muito grande em relação ao futebol, incluindo as contratações de estrelas para o futebol chinês. Uma loucura. Isto além de haver um incentivo na contratação de técnicos estrangeiros para as academias e escolas de futebol. Na Federação, por exemplo, temos um diretor-geral belga, treinadores croatas, espanhóis, portugueses, franceses, italianos...", contou Luís Gonçalves, constatando que a "China está à procura do seu próprio ADN, a sua própria ideia de jogo" colhendo vários modelos de sucesso da Europa..Luís Gonçalves é um dos muitos portugueses a trabalhar atualmente no futebol chinês e elogia as condições dadas aos treinadores - "são do melhor que há, são infraestruturas completas ao serviço do treino". De resto, "o investimento está a ser brutal" e há muito patrocínio do governo para que se aposte no futebol desde a escola: "Há uma atitude concertada em prol do futebol, que começa no presidente que adora futebol." Mas é mais do que isso. Segundo o técnico português, os chineses perceberam que "o futebol pode ser um veículo para o desenvolvimento desportivo e económico do país". O facto de a China só ter estado num Mundial (2002) e de os países vizinhos terem progredido também deve ser pesado na decisão de lançar bases para um futebol mais forte, na opinião do português, que tem um tradutor chinês para o ajudar..Segundo Luís Gonçalves, na China o futebol ainda não tem a expressão desejada, mas vai ganhando lugar na vida dos chineses que olham para a bola como alternativa ao basquetebol e ao ténis de mesa como desportos nacionais. Os resultados da seleção principal é que não ajudam: "No outro dia, quando jogou a seleção, eu e o meu adjunto fomos jantar a um restaurante e ninguém estava a ver o jogo. Pedimos para porem a televisão no jogo, mas ninguém parecia muito interessado em ver além de nós.".Europeus exploram pouco e mal o mercado chinês.Na opinião do selecionador chinês de sub-16, os grandes clubes europeus e mesmo os portugueses exploram pouco e mal as possibilidades do mercado chinês: "Alguns clubes europeus têm parcerias com clubes chineses e outros têm academias, mas, na minha opinião, a estratégia que tem dado melhores resultados é a adotada pelo Espanyol de Barcelona, que contratou o Wu Lei, o Maradona chinês, um jogador que tem qualidade e que prende os chineses à televisão mesmo às três da manhã, que é quando passam os jogos da Liga espanhola.".Por isso "talvez fosse interessante os clubes portugueses equacionarem isso" e "talvez" a Liga portuguesa ganhasse mais impacto na China. "Eu sei que há muitos jogadores chineses em divisões secundárias em Portugal e muitas vezes regressam mais valorizados, como o Yu Dabao que jogou no Benfica e hoje é capitão do Beijing Guoan. Mas ainda há muito mais para explorar. Já há qualidade para isso, embora o nível não seja muito elevado para equipas de topo", defendeu o técnico de 47 anos. Os chineses são pouco expressivos - "são ensinados a ser disciplinados, a cumprir ordens e têm algum receio de expressar as suas opiniões" -, mas de vez em quando um ou outro lá se atreve a questionar o selecionador sobre o seu passado na Academia leonina. "Sabem que eu estive no Sporting e querem saber se treinei o Ronaldo e eu digo-lhes que sim. Que sempre foi muito ambicioso, sempre quis ser o melhor e para atingir esse objetivo sempre trabalhou no máximo. O que mais me impressionou nele quando jovem era a intensidade que ele colocava em tudo o que fazia, um perfeccionista acima de tudo, um miúdo que trabalhava no máximo.".Mas durante a década em que trabalhou na formação leonina o que mais o impressionou, além das fintas do Quaresma, foi a maturidade de Adrien Silva aos 15 anos: "Jogava como um adulto.".Para o treinador, "claro que é preciso talento", mas o talento é "90% de transpiração e 10% de inspiração". E o que lhe diz é isso mesmo: "Trabalhar, trabalhar e não desistir quando aparecem as adversidades. Eles, fruto da cultura que têm, dão muita importância ao erro, o erro tem um peso muito grande e é preciso dizer-lhes que com o erro também se aprende", revelou Luís Gonçalves. Com saudades da família - que ficou em Portugal porque os dois filhos estão em idade escolar - e do bacalhau, Luís contenta-se com "o pato à Pequim, que é muito bom". Não estranha a comida, mas não se aventura com coisas mais exóticas, como cão, rãs e gafanhotos: "No outro dia passei numa rua e vi um cão esfolado como se fosse um coelho e isso fez-me alguma impressão, confesso."