Após três anos, Pinhal de Leiria continua à espera da reflorestação

No dia em que o secretário de Estado foi à Marinha Grande levar boas notícias (um pacote de investimentos para os próximos anos), populares, partidos e movimentos saíram à rua para dizer que nestes três anos "quase nada foi feito". Ao mesmo tempo, o Observatório Técnico Independente fez chegar à Assembleia da República um relatório técnico em que arrasa a gestão do ICNF
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À chegada à Praça Stephens, em frente à Câmara Municipal, a música de intervenção não engana: estamos na Marinha Grande, há dedo do PCP nesta organização. Mas uma volta pelos olhares acima das máscaras, vistos de perto, deixa perceber que afinal estão ali representantes de (quase) todas as forças políticas e movimentos independentes - que nos últimos atos eleitorais ganham força no concelho. A concentração foi marcada pela comissão popular "O Pinhal é nosso", criada na sequência do fogo de 15 de outubro de 2017, que destruiu 86% do Pinhal do Rei, dizimando a floresta que encorpava a maior mata nacional.

Horas antes, ali bem perto, o secretário de estado das Florestas anunciava um pacote de 4,4 milhões de euros a investir no Pinhal de Leiria, a partir do próximo ano e até 2024. João Catarino foi à Marinha Grande fazer um balanço do que, no seu entender, tem sido o trabalho do ICNF e do governo nos últimos três anos, e garantiu que o processo de retirada de madeira ardida com valor comercial "está concluído em 99%", com uma receita de 16 milhões de euros. E foi ali, em pleno Teatro Stephens, que considerou existirem "pequenos atrasos" na recuperação do Pinhal, justificando-o com "burocracias e o ritmo próprio da natureza Recorde-se que o Governo anunciara anteriormente um investimento de 4,3 milhões de euros, destinados a uma área de 2.500 hectares que exigia rearborização. João Catarino garante que "à volta de 2 milhões de euros estão executados", sendo que a restante verba será aplicada até 2022. Mas há ainda planos que vão demorar mais dois anos, segundo o governante.

De acordo com os dados disponibilizados pelo ICNF, da rearborização planeada há 1178 hectares em que já foi executada, faltando fazê-lo em 1344. A recuperação será assegurada "sobretudo com pinheiro bravo, sendo utilizadas outras espécies nos locais onde o solo e a humidade o permitam", destaca o plano apresentado esta quinta-feira.

Há muito reivindicado pela presidente da Câmara da Marinha Grande, Cidália Ferreira, em diversas ocasiões junto do Governo, o Museu Nacional da Floresta parece finalmente estar a caminho da Marinha Grande. O secretário de Estado garantiu que a administração central está na disposição de ceder os imóveis para esse efeito, bem como ceder todo o espólio da Direcção-Geral de Florestas. Segundo João Catarino, a verba disponível para já rondará os 300 mil euros, embora esse valor possa crescer. A única certeza é que "para o modelo funcionar a Câmara Municipal tem de ser o líder do projeto", garantiu o governante, para satisfação da autarca.

Entretanto, um estudo enviado esta semana à Assembleia da República pelo Observatório Técnico Independente, arrasa a gestão do Pinhal de Leiria pelo ICNF e propõe entregar a administração da Mata Nacional a uma nova entidade com a participação do Município da Marinha Grande, de instituições de cariz científico e de organizações da sociedade civil. Aquele organismo sugere a criação de um novo organismo, controlado pelo Estado, mas que resulte da partilha de decisões entre a Administração Central e a câmara municipal, para além de outros intervenientes, nomeadamente privados, para substituir o ICNF - Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, que depende, em exclusivo, do Ministério do Ambiente e da Acção Climática. A notícia foi divulgada esta quinta-feira pelo Jornal de Leiria, e não mereceu contestação por parte do secretário de Estado. De acordo com o Observatório, poderá ser na forma de cooperativa de interesse público, sociedade ou fundação, garantindo que nenhum parceiro tenha isoladamente a maioria.

"Nestes 3 anos muito foi dito e infelizmente muito pouco foi feito", afirma Rui Graça, da comissão popular "O Pinhal é nosso". Num manifesto divulgado pela organização (a que se juntaram também o Sindicato Vidreiro e várias organizações e cooperativas da Marinha Grande), a comissão sublinha que "populações anseiam há tempo demais por medidas concretas, implementadas no terreno, que garantam que o Pinhal é protegido e renasce, e que se mantém público e ao serviço do povo da Marinha Grande, do Distrito e do País".

"Três anos é tempo demais", insiste Rui Graça, acrescentando que "a imagem de abandono e de degradação do Pinhal, das estradas e caminhos, e do seu património imobiliário é a dolorosa prova da falta de ação, de investimento e de medidas concretas".

Numa espécie de assembleia popular, as cerca de 50 pessoas que se concentraram na praça Stephens aprovaram, por unanimidade, e de braço no ar, uma resolução de que darão conta às diversas entidades oficiais. Pedem que se inscreva no Orçamento de Estado o princípio de que as verbas realizadas com a venda de material lenhoso proveniente do incêndio de Outubro de 2017 , e que "sejam integralmente aplicadas no financiamento de atividades de reflorestação, limpeza, arranjo de vias, recuperação de imobiliário e de gestão florestal, bem como para investimento em meios técnicos e humanos adequados".

Mas é aí que os números de uns e outros não batem certo. O governo fala de 16 milhões, os populares contabilizam 13 milhões e meio. E ao final do dia o PCP divulgou um comunicado em que cruza as declarações do Secretário de Estado com o articulado do Orçamento do Estado (que prevê a transferência do Fundo Florestal Permanente para o ICNF de 13,5 milhões de Euros) e concluiu que há "uma inaceitável decisão do Governo de não investir a maior parte das verbas resultantes da venda de madeira do Pinhal de Leiria nesta Mata Nacional, e de não cumprir com as suas responsabilidades na reparação da tragédia que se abateu sobre o Pinhal e no reforço de meios para esse efeito".

No meio dos populares (a maioria com ligações a partidos e movimentos), uma faixa lembrava aquilo que na Marinha Grande se repete até à exaustão: "o pinhal é nosso". Vasco Silva, representante da Cooperativa do Povo, lembrava que foi sempre o pinhal "que alimentou a nossa indústria". E por isso olha com tristeza para "um elemento gerador de riqueza que foi simplesmente abandonado".

Perto da faixa, o DN reencontra Ana Paula Silva, que na manhã de 16 de outubro relatava as horas de pânico vividas na Vieira da Leiria, quando muitos tiveram que abandonar as casas por precaução. Dirigente local e nacional do CDS, está acompanhada de vários elementos do partido, entre eles a presidente da distrital, Rosa Guerra. "Nisto não pode haver partidos. Ou melhor, pode, mas temos que estar todos unidos na defesa de uma coisa que é de todos", afirma.

Nessa altura já falou também Etelvina Ribeiro, do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Vidreira, que esteve na organização da concentração. "Estivemos aqui todos em segurança", sublinha a dirigente sindical, aludindo às marcas coladas no chão da praça e que garantiam o distanciamento social. Só não disse que os manifestantes estavam, além disso, bem seguros: do lado de lá da rua, atrás do muro, vários carros e uma carrinha da PSP, e os respetivos agentes, guardavam aquelas poucas dezenas de populares. E no meio deles, alguns elementos desfardados.

"Prometeram-nos o verde e ficámos com as cinzas". A frase é sublinhada no comunicado divulgado também hoje pelo Movimento Associativo de Apoio às Vítimas dos incêndios de Midões (MAAVIM), que desde há três anos fala de abandono. O fogo devastou vários concelhos da região centro no mesmo dia em que ardeu o Pinhal de Leiria, provocando a morte de mais de quatro dezenas de habitantes. "Continuamos a reivindicar para a população o mesmo desde Outubro de 2017: milhares de Agricultores que nunca receberam ajudas; centenas de empresas, especialmente na área florestal, que não receberam qualquer apoio e

levaram muitas famílias a ficar sem posto de trabalho; dezenas de famílias que nunca receberam apoio para a sua habitação, mesmo depois de tantas promessas; infraestruturas e Floresta que ficou abandonada e sem planos para o futuro", escreve o porta-voz, Nuno Pereira, adiantando que o comunicado "poderia ser muito bem o mesmo de 2019, porque pouco mais foi feito e não fosse a nossa insistência e das próprias populações e estávamos todos esquecidos e abandonados".

Numa zona onde muitas famílias estrangeiras têm contribuído para repovoar lugares e aldeias, Nuno Pereira acrescenta que "estão mais de 1000 pessoas sem casa, que em Outubro de 2017 perderam tudo e a CCDRC chumbou os seus processos, enquanto outros têm habitações onde anteriormente não existiam; se a desculpa é a legalização, então como foram outras construídas exatamente com os mesmos problemas, utilizando como desculpa para reprovar quem ficou sem nada a legalização?", questiona.

A 15 de outubro de 2017, a Proteção Civil considerava aquele como "o pior dia do ano" em matéria de incêndios florestais. Mais de 500 ocorrências mobilizaram todos os meios do país, mas não bastou para evitar a tragédia. Morreram 50 pessoas.

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