Perder o medo e perder a mão

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Numa rápida ida ao mercado para comprar peixe, um casal de idosos - de máscara, mas com o nariz de fora - demorou a aperceber-se da minha dança. À espera de vez, fui-me afastando para a direita ou para a esquerda, a cada aproximação, tentando manter a distância de segurança. Ao fim de uns minutos, quando a senhora finalmente se apercebe das minhas movimentações, diz, perentória: "Isto agora já não há nada, já passou tudo!"

Um dos nossos maiores aliados nos primeiros meses de pandemia foi o medo. O medo de ficarmos infetados e de infetarmos os que nos são queridos. O medo de deixarmos colapsar o Serviço Nacional de Saúde, como vimos acontecer noutros países. O medo de uma crise económica que nos roube o emprego e o rendimento.

Enquanto tivemos medo, ficámos fechados em casa, não nos beijámos nem nos abraçámos, adotámos o teletrabalho, aceitámos ficar sem restaurantes, concertos e centros comerciais, e ainda ansiávamos pela ordem da Direção-Geral da Saúde para usarmos máscara, luvas e até um fato de astronauta, se necessário fosse. O medo - como é tão característico dele - podia ter-nos paralisado. Mas não. Neste caso, teve o único efeito positivo que se lhe conhece: deixou-nos mais focados num objetivo comum, que era vencer esta pandemia.

Nem tudo terá sido bem feito, mas a verdade é que os resultados pareciam encorajadores. Elogiado lá fora, Portugal passou a ser um caso de estudo pela forma como respondeu à pandemia, quer do ponto de vista sanitário quer do ponto de vista político.

Depois disso, o desconfinamento era obrigatório. Se não fosse pelo cansaço humano, seria sempre pela salvação de uma economia a quem puxaram a fundo o travão de mão e já começava a calcinar, se o Governo não a pusesse a mexer novamente.

Mas é a partir daqui que tudo se complica. Reabrir um país em plena pandemia é, seguramente, mais complexo do que fechá-lo. E se é justo reconhecer que, com mais ou menos atraso, Governo, Assembleia da República e Presidência agiram com firmeza e determinação durante o estado de emergência, é também evidente que, nas últimas semanas, começaram a perder a mão.
A mensagem, cada vez mais equívoca, e, sobretudo, a ideia de que o pior já passou - ainda que nunca verbalizada desta forma - foram-se cimentando através de palavras, atos ou omissões que não podem ser ignorados e que, agora, nos obrigam a retroceder.

A excitação das mais altas figuras do Estado a anunciar a final da Liga dos Campeões em Lisboa é apenas uma caricatura disso mesmo. Pode uma mensagem política ser mais equívoca quando se permitem manifestações - sindicais, antirracistas ou de grupos xenófobos, como vai acontecer agora - mas não se permite que os alunos regressem todos às salas de aula? Podem os apelos ao distanciamento social produzir algum efeito quando vemos autocarros e comboios à pinha, porque o Estado não cuidou de os reforçar? Podemos nós confiar na segurança com que se reabre as fronteiras e se retoma os voos quando, dentro do mesmo país, as regras de segurança são diferentes de aeroporto para aeroporto?

Nas últimas semanas, e perante o aumento do número de infetados na Grande Lisboa, o discurso político - corroborado, já agora, pela DGS - foi oscilando entre "grupos que estavam devidamente identificados" e "não há problema nenhum, só estamos a testar mais", para acabar na admissão de que "há um problema e vamos ter de tomar medidas restritivas novamente".

Alguma coisa está a correr terrivelmente mal na coordenação entre o poder político e as autoridades de saúde. E se o Governo não quer perder a mão, tem de agir rapidamente e mudar o que (ou quem) tiver de ser mudado. Se é importante decidir bem, é ainda mais fundamental falar verdade às pessoas. Não para lhes meter medo, mas para não apagar esse medo por completo. Esta pandemia ainda não foi derrotada. Ainda não está tudo bem.

Jornalista

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