Pena de morte pode doer, decide Supremo dos EUA
"Não será requerida uma caução excessiva, nem multas excessivas impostas, nem infligido um castigo cruel e incomum." Foi com base nesta emenda, a oitava, da Constituição americana, que o condenado à morte Russell Bucklew, de 50 anos, apelou a Supremo, explicando que a doença rara da qual sofre poderá implicar que se executado com injeção letal sufoque longamente no próprio sangue e pedindo para ser antes usada a câmara de gás. Mas apesar de já ter conseguido vários adiamentos da morte à qual foi sentenciado há 22 anos, desta vez a resposta foi não. O tribunal decidiu que ele não tinha "demonstrado que o seu sofrimento seria excecional" e que "a oitava emenda não serve para garantir uma execução sem dor". Esse, comentou o juiz Neil M. Gorsuch ao anunciar a decisão, "é um luxo que não é garantido a muita gente, incluindo as vítimas dos crimes capitais".
Gorsuch acusou ainda o condenado de tentar adiar a sua execução com processo atrás de processo. "O povo do Missouri e as vítimas sobreviventes merecem melhor", lê-se no acórdão.
O caso de Bucklew dividiu claramente o tribunal entre conservadores e liberais: o juiz Stephen G. Breyer, no seu voto de vencido, a que aderiram as juízas Ruth Bader Ginsburg, Sonia Sotomayor e Elena Kagan, diz que o condenado apresentou convincente prova de que há grandes possibilidades de, devido à sua doença, sufocar no seu sangue, e que tal corresponde a um sofrimento constitucionalmente proibido, ou seja, "um castigo cruel e incomum". E conclui: "A maioria [do tribunal] sustenta que o estado [do Missouri] deve executá-lo na mesma. A meu ver, essa decisão viola o claro comando da oitava emenda."
Na opinião de um articulista da Slate, a decisão vai mais longe ainda: "legaliza a tortura" e, "num truque chico-esperto" contraria 60 anos de jurisprudência do Supremo ao aderir às teses que o juiz Clarence Thomas e Anthony Scalia tinham defendido, "perdendo", em outros casos semelhantes. "Esta sentença assinala o fim de uma jurisprudência de interpretação da oitava emenda baseada em padrões de civilização e o início de uma nova, brutal era na pena capital americana", escreve no seu comentário Mark Joseph Stern.
A jurisprudência do Supremo, explica Stern, aceitando a constitucionalidade da pena de morte, considera no entanto que tem de haver formas de a levar a cabo de acordo com a Constituição. "Porque algum risco de dor é inerente a qualquer método de execução", disse o tribunal em decisões anteriores, "a Constituição não requer que se evite qualquer risco de dor. O dever do tribunal é simplesmente assegurar que os estados não impõem um método de execução arriscado quando um menos doloroso está à disposição", lê-se no artigo da Slate, Ora o juiz Thomas tinha defendido num dos últimos casos deste tipo que "uma execução só viola a Constituição quando terror, dor ou humilhação lhe são adicionados; desde que o estado não o faça, a execução não é inconstitucional." Traduz Stern: nesta perspetiva, um condenado só podia apelar contra um determinado método de execução se conseguisse provar que o estado queria gratuita e sadicamente causar-lhe dor acrescida -- o que, comenta, seria impossível de fazer.
Ora segundo Stern o que o juiz Gorsuch, nomeado por Donald Trump em 2017, fez foi usar essa posição minoritária de Thomas como se fizesse parte da jurisprudência do tribunal: "Segundo Gorsuch, o que está em causa neste caso é se a injeção letal 'adiciona cruelmente dor' à morte de Bucklew. Mas essa linguagem não vem de decisões anteriores do tribunal [Baze, em 2008, e Glossip, em 2015]. Vem do voto de vencido de Thomas, com o qual só o juiz Scalia concordou. Com um truque de chico-esperto Gorsuch transformou o teste da 'dor adicionada' de um ponto de vista minoritário em precedente jurisprudencial e vinculativo do Supremo."
E Stern continua: "Porque é que isto é importante? Porque desde 1958 que o Supremo rejeitou uma interpretação originalista [a que interpreta a Constituição à luz da época em que foi escrita e do que então era aceite] da oitava emenda -- que permitiria o enforcamento de crianças entre outras penas horripilantes. Passou a considerar que a questão é se uma determinada pena viola 'os padrões de decência' de 'uma sociedade civilizada'. Nas últimas decisões [Baze e Glossip] o tribunal não assumiu essa posição mas também não a rejeitou. Ao forçar os estados a usar o menos doloroso de dois métodos de execução, adotou a visão resolutamente não originalista segundo a qual a oitava emenda pode requerer uma morte mais 'civilizada'. Com Bucklew, Gorsuch destruiu essa lógica, substituindo-a com o originalismo linha dura de Thomas."
Ora, diz Stern, as decisões anteriores que ilegalizaram a execução de menores, de deficientes mentais e de pessoas que não cometeram homicídio basearam-se todas na ideia de que a oitava deve ser interpretada de acordo com a evolução dos padrões de civilização da sociedade. O mesmo quanto à limitação da possibilidade de impor prisão perpétua a criminosos juvenis. Se a nova maioria do Supremo decidir prosseguir o caminho originalista, essas decisões podem ser revertidas.
Bucklew foi condenado à morte por ter assassinado a tiro o namorado da sua ex-namorada, Stephanie Ray, tentado atingir a tiro o filho dela, sequestrado e violado Ray e ferido um agente da polícia no tiroteio que se seguiu. Viria a fugir da prisão e a atacar a mãe de Ray com um martelo antes de ser apanhado. O seu objetivo com o apelo não era questionar a constitucionalidade da pena de morte, ou o método da injeção letal usado no Missour; argumentou que, se aplicado nele, devido ao facto de sofrer de angioma cavernoso (no seu caso, tumores variados na face, garganta e pescoço que podem rebentar), esse método poderá resultar numa morte torturante que a Constituição proíbe.