PCP em tribunal: "Com esta atitude, o Miguel pôs-se fora do quadro"

Miguel Casanova diz ter sido despedido sem justa causa. O caso está a ser julgado no Tribunal do Trabalho, onde esta sexta-feira decorreu a segunda audiência.
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É uma estreia para o Partido Comunista Português (PCP) e poucos ou mesmo nenhuns partidos portugueses terão estado sentados no Tribunal do Trabalho como réus. O antigo funcionário do PCP​​​​​​ Miguel Casanova alega ter sido despedido por se ter mostrado contra o apoio do seu partido ao Governo de António Costa. Mas Armando Rodrigues, também ele funcionário do partido e testemunha no processo, garante que tudo começou apenas numa transferência de funções que Miguel recusou - alegadamente por se ter sentido sancionado pelas suas opiniões e por não lhe conseguirem explicar que tarefas iria designar. "Com esta atitude, o Miguel pôs-se fora do quadro", disse, durante a segunda sessão de julgamento deste processo, que decorreu esta sexta-feira.

Apesar de se conhecerem há cerca de 15 anos, não são próximos um do outro e sempre estabeleceram um relação meramente partidária, segundo conta Armando Rodrigues. Na última reunião que recorda com o ex-funcionário, onde alguns dirigentes terão tentado fazer Casanova aceitar as novas funções, saiu "com a sensação de que não havia volta a dar". "Ele disse 'eu vou para o desemprego, mas não vou morrer à fome, tenho amigos solidários. E agora que já não sou funcionário, vou baixar a quota'. Sempre com um tom muito sarcástico, jocoso, a roçar a insolência", disse. Na sala de audiências, ao ouvir este depoimento, Miguel Casanova abanava constantemente a cabeça em jeito de desacordo, em resposta ao relato que estava a ouvir.

O antigo funcionário alega que a cessação das suas funções começou a ser desenhada pelos seus superiores já em 2015, depois de se ter manifestado contra a 'Geringonça'. Na petição inicial, entregue ao Tribunal de Comarca de Lisboa, relata um recorrente ambiente de hostilidade e de "marginalização e perseguição" do PCP contra si, que se prolongou durante meses e culminou na sua dispensa.

Luís Piçarro, também ele funcionário do PCP (desde 1976), colega e amigo de Miguel Casanova, presente em tribunal esta sexta-feira, garantiu que apesar de "nunca um membro do partido" ter sido "penalizado pelas suas opiniões", admite que "há exceções".

Já segundo o depoimento de Ana Margarida Botelho, atual responsável pela Organização Regional de Setúbal do PCP (onde Casanova exercia funções), "o Miguel sempre foi frontal, sempre disse o que pensava, e isso nunca foi um problema". Se este se sentiu sancionado, acrescenta, "foi apenas a perceção dele".

PCP alega abandono do local de trabalho

Miguel é filho do antigo e falecido dirigente comunista José Casanova, que desempenhou várias tarefas como membro do comité central do PCP, da comissão política e como diretor do jornal "Avante!". Trabalhava há 11 anos ao serviço do PCP - onde chegou após deixar um posto de trabalho efetivo que há anos desempenhava na Câmara Municipal de Setúbal - quando, em maio de 2018, foi despedido.

No início do mesmo ano, Casanova terá recebido uma ordem da direção para se mudar para a Quinta da Atalaia, no Seixal, o mesmo local onde o PCP realiza todos os anos a Festa do "Avante!". Em causa estaria a passagem de funções políticas (estipuladas contratualmente) para técnicas e, por isso, não aceitou a mudança - que, de acordo com Armando Rodrigues, resultou de uma "necessidade" para cobrir aquele posto de trabalho, que garante ter sido obrigado a "suprir com um outro funcionário", de Viseu.

"Achamos que seria uma boa solução", conta Ana Margarida Botelho. "Estávamos a fazer um processo de recomposição", do qual, de acordo com a funcionária do PCP, terá resultado a saída de dois "camaradas" e a entrada de outros dois. "Aquilo que lhe transmiti é que haveria uma alteração de tarefas. Na altura, ainda não sabíamos quais. Foi dito que teríamos outra reunião, com o Comité Central, para lhe dizermos quais seriam", acrescenta.

Quando questionada sobre as razões que levaram o partido a decidir a transferência de Miguel para outras funções, explicou que a ideia era "aproveitar as capacidades do Miguel". "O sentido geral foi: não te recuses, nós queremos contar contigo. Da parte do partido isso foi claríssimo, foi reafirmado várias vezes. E ele afirmou que queria continuar a ser funcionário", remata.

Admite que nesta reunião foram "referidos alguns comportamentos" de Casanova, "mas a questão central não era a crítica".

O funcionário ter-se-á mantido na ORS e quando, em março do mesmo ano, o seu gabinete é ocupado por outro funcionário, continua a apresentar-se na organização, agora sentado do lado de fora, na rua, à espera que lhe fossem delegadas tarefas. Dois meses depois, a 9 de maio de 2018, recebe uma carta a anunciar o seu despedimento, justificada pelo alegado abandono do local de trabalho. Facto que o PCP frisou quando contactado pelo DN: "A pessoa envolvida abandonou o trabalho, não foi despedida."

A primeira sessão de julgamento teve lugar na quarta-feira passada. José Capucho, um dos quatro principais dirigentes do partido, foi ouvido. Foi ele quem mais de perto lidou com o desenvolvimento da situação laboral de Miguel Casanova e, por isso, o seu nome surge várias vezes mencionado em todos os momentos descritos em tribunal. Esta sexta-feira não foi exceção. Em tribunal, Capucho deixou claro que considera as normas internas do partido superiores a qualquer lei laboral. "É-se funcionário enquanto o partido quiser", disse, tentando justificar assim a decisão do PCP em dispensar o funcionário.

O que diz a lei

Um contrato de trabalho pode reger-se não só pelo código mas também por instrumentos de regulação coletiva de trabalho (através dos quais se reúne regras específicas para a empresa), bem como pelo regulamento interno de usos e costumes da entidade, alerta um especialista em direito do trabalho, em entrevista ao DN. Aos olhos da lei, a justificação do partido deve ser objetiva, mas o contrato laboral com o trabalhador pode mesmo prever situações de conflito ideológico ou entre funcionários.

O mesmo especialista, que escolheu manter-se anónimo, duvida até que este caso possa ser julgado como "abandono do local de trabalho", razão invocada pelo PCP para o despedimento. Esta justificação pressupõe que o funcionário não só atingiu o limite de faltas injustificadas como não revelou intenção de voltar ao ativo. E, de acordo com a defesa de Miguel Casanova, este sempre se apresentou a todas as reuniões entre janeiro e maio - a primeira a data em que foi designado para outro local e função, a segunda em que foi dispensado - e continuou a demonstrar interesse em continuar no ativo, quando questionado sobre o mesmo. E, neste caso, explica, haverá apenas matéria para que Casanova receba um processo disciplinar.

Mas, de acordo com Ana Margarida Botelho, funcionária do PCP, o partido sempre adiou essa decisão. "Nós tentamos resolver a bem. Não é nossa prática apontar faltas injustificadas e interpor processos disciplinares", esclareceu esta sexta-feira, em tribunal.

Pedro Namora aceitou defender Casanova por amizade ao pai do requerente e porque mais nenhum outro aceitou defendê-lo. Na petição inicial entregue a tribunal, está descrito que o advogado que o funcionário contratou inicialmente "reteve o processo durante dois meses e, no final, alegou que por pressões do PCP não podia assegurar a defesa".

Do lado do PCP, senta-se o advogado Luís Corceiro, membro da Comissão Nacional de Advogados do Partido.

Apesar da relação hostil com o partido do qual se mantém militante, o antigo funcionário não pede indemnizações. Exige apenas a sua reintegração como funcionário, que o PCP lhe continua a negar.

Jerónimo de Sousa falha a audiência

Ao todo, há 14 testemunhas mencionadas no processo, algumas delas comuns à defesa e acusação. Entre militantes e funcionários, está também o secretário-geral do partido, Jerónimo de Sousa, bem como o deputado Francisco Lopes.

Ambos eram esperados na audiência desta sexta-feira, mas não compareceram. Segundo o advogado de Casanova, os dois recorreram ao estatuto de deputados para não comparecerem à audiência. O PCP terá apenas proposto a possibilidade de entregar ao tribunal um testemunho por escrito. Mas tal impediria a existência de um contrainterrogatório, pelo que Pedro Namora decidiu prescindir destas testemunhas.

Contactado pelo DN, o PCP indicou apenas que as suas presenças "não estão consideradas em tribunal", ainda que os seus nomes surjam mencionados no rol de testemunhas, ao qual o DN teve acesso.

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