Paulo Dentinho mergulhou nas notas de reportagem com décadas de existência, nas imagens de arquivo da RTP que recolheu durante anos fora de Portugal e como enviado especial a zonas de guerra, na conversa com repórteres de imagem que o acompanharam e trouxe para a luz do dia histórias no limite que viveu como jornalista..No livro Sair da Estrada, lançado pela Caminho, o antigo correspondente da RTP e ex-diretor de Informação da estação pública recupera momentos insólitos, mas também as ameaças de morte a ele e à família em Maputo - o "mais doloroso momento de todos por estar com a família" - ou os episódios limite, um deles a caminho de Alepo, na Síria. "Foi um dos meus momentos de maior medo, arrancar de madrugada para ir a Alepo, ter aquele pressentimento de que podia mesmo não correr nada bem e ter aquela vontade de me enfiar debaixo da cama e não sair dali. Mas depois a vida começa, o carro anda e vais", desfia Paulo Dentinho. .Uma obra com detalhes vívidos que conta as histórias por trás das notícias - algumas exclusivos mundiais - que testemunhou. Viagens por geografias em conflito como Israel, Timor, Síria, Paquistão, Angola, Moçambique, Líbano, Turquia, Grécia, Líbia, e, entre outras, em Kinshasa, no Congo, onde achou que "iria mesmo morrer".."Este livro é a história das pessoas que estão em reportagem, do que aconteceu. Não há imagens de tudo, de quando fomos presos por três vezes em circunstâncias distintas. Pura e simplesmente não era possível filmar, por isso relato as memórias destes episódios ou de quando não tínhamos dinheiro, ou câmaras ou tivemos de dormir em quartos nojentíssimos", recorda..Relatos onde frequentemente o jornalista aponta percalços dos diretos, histórias não emitidas e telefonemas para os diretores em Lisboa que nem sempre eram atendidos em tempo e em momentos de aflição. Mas o jornalista minimiza a importância destas revelações. "Não é recado nenhum para ninguém, limitei-me a contar as histórias como elas exatamente aconteceram", responde..Dentinho, porém, não nega: "Houve alturas em que nos sentimos desacompanhados, sobretudo quando se está em momentos de tensão e é mesmo preciso desbobinar, de dizer qualquer coisa porque se está muito sozinho. Tenho a certeza de que vários outros jornalistas, de outros meios, passaram por isto.".Como diretor de Informação, entre março de 2015 e outubro de 2018, Paulo Dentinho garante que tentou não replicar o modelo quando havia enviados a pontos quentes do globo. "Lembro-me de uma situação algo tensa com uma equipa que estava num país que não era propriamente uma democracia. Como tinha passado por uma situação próxima e semelhante, fiz tudo o que podia para evitar que a minha equipa viesse a ter problemas. Fizeram-me chegar ameaças de que iam deter a minha equipa, fartei-me de fazer telefonemas e evitei o que poderia ser um escândalo diplomático", revela, sem especificar o caso..Sobre os motivos que o levaram a voltar a pisar 13 rotas do passado - algumas repetidas mais uma e duas vezes - e que contam detalhes que vão desde 1997 até 2016, o jornalista que conduz o formato Mundo Sem Muros, exibido na RTP3, explica: "Entendi que havia um lado de justiça que devia aos meus filhos e aos repórteres de imagem - muitas vezes esquecidos por estarem do outro lado da câmara e que sem eles, em televisão, não há relatos - que me acompanharam. Apeteceu-me escrevê-las e e tinha tempo para o fazer."."Estar em reportagem, nestes pontos do mundo, nestas épocas, foi uma explosão de adrenalina. Não sei se é uma espécie de vício, um gosto, uma vontade, uma curiosidade terrível de ir à procura de uma história e sentir que é por ali. Como jornalistas, nunca deixamos de ter esse enorme gozo", analisa Dentinho..Não fala em regressar por onde passou e não antecipa para onde gostava de ir no futuro, ainda que, já em 2019, tenha ido à Prisão Central de Curitiba, no Brasil, entrevistar o antigo presidente do Brasil, Lula da Silva. "Por agora não tenho grandes planos. Vamos ver o que a vida traz. Conduzo um espaço informativo de liberdade, estou com jornalistas de diferentes horizontes, participo no Visão Global da Antena 1. Se surgir alguma situação, vamos ver"..De fora deste livro está a história da saída da direção de Informação da RTP1, em 2018. Quase três anos depois, o ex-diretor - que evocou à data a existência de "um possível complot interno" - diz que "toda a história só se percebe numa determinada linha temporal". "Em pazes com esse passado", como refere, Paulo promete: "Um dia falarei sobre isso, não é certamente agora porque não é assim tão simples." Recorde-se que o processo envolveu um post no Facebook que punha em evidência "críticas às sociedades e à forma como as mulheres eram tratadas", lembra o jornalista. Uma mensagem sem nomes que foi publicada, recorda Paulo Dentinho, no seu perfil privado de Facebook, posteriormente apagada, e "no dia em que fazia um ano do movimento #MeToo, que era um dos assuntos do programa que estava a preparar"..Uma análise por parte do responsável editorial máximo da estação pública à data e que foi interpretada como uma referência ao caso de alegado abuso sexual de CR7 sobre a norte-americana Kathryn Mayorga, em 2009..Sobre um eventual regresso a cargos de direção, Dentinho sublinha que "é preciso gostar muito do poder para isso". "E eu não gosto do poder. É muito difícil voltar. Não posso dizer que é impossível, mas acho francamente isso mesmo porque o exercício do jornalismo precisa de uma dinâmica própria e aquilo que eu sou é jornalista-repórter", reitera..Sair da Estrada Paulo Dentinho Caminho 15.90€.carla.bernardino@delas.pt