Patrícia Mamona foi ao Palácio de Belém e levou a medalha de ouro e a fita métrica
Patrícia Mamona entrou na sala do Palácio de Belém, onde era esperada por alunos de três escolas do País, de sorriso aberto e pronta a contar como se tornou uma atleta de alta competição. Não foi fácil. Começou contra a vontade dos pais, chegou a ser detida pela polícia, teve de mudar de país e regressar a Portugal para finalmente brilhar no triplo salto, disciplina do atletismo em que é recordista nacional, com 14,65 metros, e conquistou duas medalhas europeias (prata em 2012 e ouro em 2016).
A atleta foi a convidada do programa "Desportistas no Palácio de Belém", a iniciativa de Marcelo Rebelo de Sousa que já levou ao Palácio de Belém desportistas como Rosa Mota, Jorge Fonseca, João Sousa e Frederico Morais, por exemplo, e admitiu que o facto de ter habituado os portugueses a bons resultados nos eventos internacionais implica uma pressão extra. "Hoje em dia tenho muita pressão. Quando comecei a fazer o triplo [salto] e a ganhar os nacionais era muito pessoal, mas agora estou a representar Portugal, estou a representar uma bandeira. Tenho uma responsabilidade de representar-vos naquela competição, e obviamente que quero fazê-lo da melhor maneira", sublinhou perante uma plateia de 62 alunos e nove professores do ensino secundário de Lisboa, Mação e Vila Flor.
Marcelo Rebelo de Sousa fez uma curta intervenção na iniciativa, deixando rasgados elogios à atleta de 30 anos e antecipando uma boa prestação da mesma nas Olimpíadas:"Têm aqui alguém que honra e prestigia imenso Portugal. É um exemplo. Aproveitem bem, perguntem bem, porque é uma ocasião única que têm. Veem-na na televisão, veem-na às vezes no estádio, e vão vê-la ótima no ano que vem no Japão."
Tudo começou aos 10 anos na escola. Primeiro no corta mato. "Era uma menina muito pequena, que gostava muito de fazer desporto e ganhava aos rapazes", começou por contar a atleta antes de revelar que se iniciou na competição "por causa dos donuts que davam no final das provas". Foi no final de uma dessas provas que um professor de educação física, José Uva (hoje ainda é o seu treinador), a fez despertar para a competição. Ela ficou entusiasmada, mas quando chegou a hora de ir falar com os pais para treinar e competir a coisa não correu bem: "O meu pai disse que não podia ir ao treinos, que eram no Cacém, longe de casa e que tinha de estudar porque isso era o mais importante. Ele gostava que um dia eu fosse médica."
Não se resignou e decidiu traçar um plano para contornar o não do pai e treinar às escondidas. O problema é que como tinha de apanhar o comboio todos os dias e não tinha razões para pedir dinheiro extra aos pais, Patrícia optou por viajar sem o título de transporte. Já sabia contornar o revisor... até ao dia em que foi apanhada. Como era menor foi levada para a esquadra e tiveram de ligar aos pais para a ir buscar. E foi assim que eles ficaram a saber que a filha "já treinava há algum tempo às escondidas".
Foi então que o professor/treinador entrou em ação e fez ver aos pais que a filha tinha futuro no atletismo. Ela prometeu continuar a ter boas notas e não relaxar nos estudos e eles acederam a deixá-la treinar. Passado pouco tempo o treinador pediu-lhe para experimentar o triplo salto e ficou de boca aberta. "Tu saltas muito, disse-me ele".
Entusiasmada e quase sem fôlego, a agora atleta do Sporting prendeu a atenção dos presentes no Palácio de Belém e revelou que "os pais não achavam muita piada" à faceta de atleta...até ao dia em que foram ver uma prova. Depois "passaram a ser os fãs número" um da atleta.
Depois de bater o primeiro recorde nacional e ganhar a primeira prova, chegou a primeira subida ao pódio e o primeiro dilema. "Chamaram-me e perguntaram se queria mesmo que dissessem o meu nome - Patrícia Mamona - e eu disse que sim, que me orgulhava do meu nome, que é angolano e quer dizer alguém que faz tudo para alcançar a sua visão. Explicaram-me que em Portugal não era essa a interpretação, mas eu não quis saber e ainda hoje o nome dá azo a brincadeiras", revelou a atleta olímpica.
E quando tudo estava a "correr lindamente" e ela estava a dar-se bem no atletismo, a família decidiu emigrar para Londres. Ela ficou desgostosa e depois de muita diplomacia familiar os pais deixaram-na ficar ao cuidado de uma tia para prosseguir a formação desportiva. Mas sempre com o compromisso de estudar e não baixar as notas. O que sempre cumpriu até entrar na faculdade de Medicina. Nessa altura outro dilema tomou conta de Patrícia. O curso era exigente e ela perdia muitas horas no caminho entre os treinos e a faculdade. E como "sonhava ser médica" resolveu deixar o atletismo de lado. Até que se lembrou que nos EUA havia um programa universitário para alunas-atletas e decidiu concorrer.
O sucesso foi imediato. Tornou-se na primeira portuguesa a chegar aos 14 metros e a ser campeã nos nacionais americanos. Mas antes teve de convencer o treinador americano a deixá-la tentar competir no triplo salto, uma modalidade pouco tradicional nos EUA. "Convenci-o a deixar-me treinar durante duas semanas e a inscrever-me no campeonato na disciplina de triplo salto, ganhei e consegui mínimos para os Jogos Olímpicos. Aí ele percebeu que se calhar eu devia investir mais na disciplina", contou, revelando que pensou para si mesma: "Se quero ser uma atleta a sério tenho de ir para onde possa progredir e levar isto a sério." E foi assim que regressou a Portugal e aos treinos com Gonçalo Uva e João Ganso, que treinava Nélson Évora e era o maior especialista do triplo salto do País.
De regresso a Portugal, as coisas mudaram um "bocadinho". Para ser atleta de alta competição tinha de ser "atleta durante 24 horas" e apostar tudo no treino. Treinava (e treina) seis horas por dia (três horas de manhã e três à tarde", estar atenta à alimentação e contratar um psicólogo para lidar com as emoções. E os resultados foram aparecendo, tanto nos nacionais como nos europeus. Em 2016 sagrou-se campeã europeia do triplo salto no mesmo dia em que Portugal se sagrou campeão europeu de futebol. "Foi um dia espetacular", confessou sem conter alguma emoção ao recordar o momento de subir ao lugar mais alto do pódio e ouvir o hino. Depois seguiu-se a presença nos Jogos Olímpicos do Rio2016 e o 6.º lugar com o melhor salto de sempre (14, 65 metros).
E para quem não sabe a distância que salta, Patrícia levou uma fita métrica para medir a distância - maior do que a largura da sala do Palácio de Belém - e deixou todos de boca aberta com o alcance de um salto. Também levou os ténis e a medalha de ouro conquistada nos europeus de 2016, que andou de mão em mão pelos miúdos, mas sem Patrícia a perder de vista: "Não a posso perder..."
Depois do sucesso no tartan chegou a fama e as capas de revista. E quando ela pensava estar lançada para o estrelato e para garantir presença num mundial, eis que uma lesão grave a levou a "colocar tudo em causa". "Pensas, o meu sonho acabou, será que consigo voltar a treinar e a competir", confessou, revelando que se inspirou no amigo Nélson Évora, que também tinha passado por uma lesão grave e voltou em grande e conseguiu dar a volta por cima.
E deu. Voltou nos últimos europeus, em que foi quarta, um lugar que ela "detesta": "Prefiro ficar em oitavo do que à beira das medalhas, é um lugar muito ingrato." Falhou as medalhas, mas garantiu um lugar nos Jogos Olímpicos de Tóquio2020. "Eu acho que, se um dia ganhar uma medalha olímpica, vou ficar contente, muito contente, nesse dia. Mas, provavelmente, no próximo dia, vou voltar à normalidade e perguntar: ok, o que vem a seguir? Outra medalha olímpica...", afirmou a atleta do Sporting, consciente que luta por um País: "É uma responsabilidade porque acho que vocês vão ficar tão orgulhosos de terem uma atleta do vosso país, e verem a vossa bandeira nas televisões, especialmente agora, nesta fase que vão ser os Jogos Olímpicos. Toda a gente quer que os portugueses tragam medalhas. E essa responsabilidade acrescida ajuda-me a dar sentido àquilo que eu estou a fazer."
Autointitulando-se "rebelde" e "teimosa", Patrícia Mamona aconselhou os alunos a "nunca deixarem de estudar", porque os atletas "precisam de um plano B para a vida". E revelou que o que mais a fascina "é a capacidade de superação".
Isabel Alçada, a mestre de cerimónias, quis saber porque quis estudar medicina. "Um dia sonhei que estava a operar um sapo e quando acordei perguntei ao meu pai que profissão tinha de ter para operar um sapo e ele voltasse a saltar. E ele respondeu que era veterinária, mas que isso ia ser complicado para mim visto que eu tinha medo de animais. Então decidi ser médica de gente (risos)", contou a atleta, que depois lamentou a decisão da Federação Internacional de Atletismo de retirar a prova do triplo salto da Liga Diamante.
A atleta ouviu os alunos perguntarem-lhe sobre a igualdade de género no desporto, os apoios do estado e as diferenças entre os atletas olímpicos e paraolímpicos. Sobre os apoios dados em Portugal aos atletas de alta competição, a saltadora considerou que ainda há muito a fazer, sobretudo, em comparação com as maiores potências do atletismo, mas que há passos dados no bom sentido. "Felizmente temos casos de sucesso como, por exemplo, o meu. Mostrei como funciona o sistema nos Estados Unidos a nível escolar e a nível desportivo, e trouxemos um bocado disso em Portugal. Hoje em dia, estamos a evoluir. Não estamos ao nível de outros países, como por exemplo os EUA, mas estamos no caminho certo. Acho que ainda precisamos de muito apoio, mas estamos a caminhar no sentido certo", reforçou Mamona.