'Pátria': as feridas do País Basco numa série que vai direta ao coração
Era uma das sessões especiais mais esperadas do Festival de San Sebastián e, segundo os relatos da imprensa que lá esteve, superou as expectativas. A receção robusta de Pátria poderia ser um dado adquirido tendo em conta que adapta um romance best-seller de Fernando Aramburu centrado nas memórias dolorosas dos anos de terrorismo infligido pela ETA. Mas a verdade é que não é apenas o seu tema que assegura o desbloqueio emocional do espectador, seja este basco ou não. Há uma atenção às personagens, tão generosamente trabalhadas, um quadro dramático tão bem desenhado, que os seus oito episódios parecem conter a ferida interior de todo um povo. Uma dor que começa por assomar nos rostos de duas mulheres, amigas de longa data, para depois tomar conta das respetivas famílias.
Quando encontramos Bittori (Elena Irureta) e Miren (Ane Gabarain), ambas já estão marcadas com as cicatrizes da tragédia. Essa que acontece logo no início: num intenso dia de chuva, o marido de Bittori, Txato (José Ramón Soroiz), é morto à queima-roupa em frente a casa, alegadamente por membros da ETA. Dono de uma pequena empresa de transportes, ele vinha a ser alvo de intimidações que faziam prever medidas mais drásticas... A agravante é que um dos filhos de Miren, filiado ao dito movimento separatista basco e radicalizado, encontrava-se no local do crime.
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Responder à dúvida sobre se foi ele quem atirou em Txato, mais do que motor do thriller, é aqui a procura de uma forma de apaziguamento - eis a beleza da linha narrativa da série. O ano é 2011, quando a ETA anunciou que ia depor as armas, após quatro décadas de terrorismo e mais de 800 vítimas. Velha e já com a saúde fragilizada, Bittori sente a proximidade da morte e só quer que esse jovem flagelado pelo tempo na prisão (e ainda recluso) lhe diga, por fim, o que aconteceu. Ela está disposta a perdoá-lo, por mais dura que seja a verdade, conquanto os ressentimentos da mãe protetora, a outrora amiga Miren, insistam em manchar as intenções de Bittori, regressada à terra depois de 30 anos a viver em San Sebastián, desde o fatídico evento. Veio acordar fantasmas? Talvez as razões da vida e da morte sejam complexas demais para se confundirem com um mero ato de provocação.
Ao pôr em jogo a realidade de duas famílias dilaceradas pelo conflito entre o Estado espanhol e a organização terrorista ETA, a série criada por Aitor Gabilondo não o faz com um ímpeto maniqueísta (que por certo também não estaria no livro). Cada um dos lados tem os seus motivos de angústia, e é, no fundo, o escrutínio das mágoas individuais das várias personagens que justifica a viagem no tempo. Sim, porque Pátria configura-se num vai-e-vem cronológico que monta o puzzle das relações como eram e deixaram de ser, e regressa constantemente ao dia do homicídio de Txato, dando todas as perspetivas de um instante que mudou para sempre a vida daquelas famílias.
Será sobretudo na contemplação dos laços quebrados, dos olhares silenciosos, das pequenas demonstrações de afeto e de uma esperança seca que a série nos agarra, sem falsos truques de psicologia. Está tudo nas humaníssimas qualidades e defeitos das personagens, que transportam o passado no ADN e se mostram resistentes à ideia de sarar chagas. Por entre cinzentos dias de chuva, conversas com defuntos, cartas trocadas de ameaça ou perdão, luzes acesas, sombras na noite, uma planta colocada à janela, homens bons, mulheres fortes e proativas, amores perdidos e encontrados, Pátria é um comovente retrato de um povo a precisar de dialogar. Nestes tempos em que o contacto físico não é recomendável, um beijinho e um abraço aqui são gestos de uma radicalidade impressionante. Entenda-se: não porque sejam algo natural, mas antes porque, quando sucedem, significam uma dura recuperação dos códigos desaprendidos da amizade.