"Passei mais tempo com o João Ganço do que com a minha mãe ou com o meu pai. Nunca se espera isto"

Entrevista de verão a Nelson Évora
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"Grande mural", comenta Nelson Évora ao olhar para uma das paredes da pista de atletismo Moniz Pereira, no Lumiar, com a imagem do professor, onde decorreu a entrevista. Entre os campeonatos de clubes em Leiria e os campeonatos mundiais, em Londres, matou saudades da família, que continua em Odivelas. A irmã mais nova seguiu-o até Espanha e foi o seu grande apoio "nesta grande crise", confessa. Ficou sem treinador, deixou o clube e o país. Simpático, afável, não esconde a tristeza pela forma como acabou a relação de 25 anos com o seu treinador, João Ganço, e como saiu do Benfica. Este português, com pai cabo-verdiano e mãe costa-marfinense, recorda, não sem notar alguma ironia do destino, que representou primeiro o Benfica e só depois Portugal.

Veio para Portugal com 7 anos e foi morar em Odivelas no prédio de João Ganço, antigo recordista nacional de salto em altura. Uma feliz coincidência?

Sim, alinhou-se tudo para acontecer, o que aconteceu. Ter mudado de país e, por acaso, um dos meus vizinho ser desportista - foi o primeiro atleta português a saltar dois metros de altura - e ter interesse em continuar no atletismo como treinador. Eu tinha 7 anos e já tinha gosto pela corrida, ainda na Costa do Marfim. O meu tio levava-me sempre que ia correr e eu adorava.

Uma irmã também compete.

É a minha irmã mais nova, é atleta do Benfica [sorri].

Houve outras coincidências felizes ao longo da sua carreira além do encontro com João Ganço?

Essa foi a coincidência, não posso dizer que tenha tido mais. Em Odivelas conheci o meu primeiro treinador e com quem passei 25 anos da minha carreira.

O que é que sentiu quando representou Portugal pela primeira vez?

Justiça. Vivia cá desde os 7 anos e as minhas vivências da adolescência eram em Portugal. Os meus amigos eram portugueses, sentia-me mais do que 100% português, simplesmente um documento não me dava o direito de poder vincular a seleção e representar as cores nacionais. Quando obtive a nacionalidade foi um alívio. Por fim podia fazer a minha vida como seria justa e representar Portugal.

Essa situação contribuiu para ter maior consciência dos seus direitos?

O pedido de nacionalidade tem muitas regras e há determinadas condições que fazem sentido, como viver um mínimo de anos no país, o que não era uma condicionante. Quando o meu pai voltou para Portugal - tinha aqui duas casas -, reunia as condições culturais e económicas para ser português, era aqui que pagava impostos. Ele trabalhou na Costa do Marfim e, como é uma ex-colónia francesa, teve a opção de descontar cá ou pelo sistema francês.

Só faltava mesmo um papel?

Sem dúvida. Aliás, muitos dos meus amigos nunca souberam que eu não era português. Só quando dava o BI na secretaria da escola para tirar fotocópias é que viam que o meu BI era de cidadão estrangeiro. Fiz a 1.ª classe na Costa do Marfim, tive de recomeçar tudo do zero quando cheguei a Portugal e fiz aqui toda a escolaridade.

E o que é que sentiu quando representou pela primeira vez o Benfica?

Representei o Benfica bem antes de ser português [ri-se].

É mais benfiquista do que português?

Há mais tempo que sou/fui benfiquista do que sou português, é uma curiosidade, sem dúvida. Primeiro representei o Odivelas Futebol Clube, onde cresci, e três ou quatro anos depois fui para o Benfica, onde fiz grande parte da minha carreira.

Quais são as características que proporcionaram essa carreira?

Sempre sonhei muito, mas também sempre lutei muito pelos meus objetivos. Desde muito jovem que procurei bater recordes nacionais, o que consegui, mas esses recordes não pertencem nem a Cabo Verde, nem à Costa do Marfim, nem a Portugal por esta confusão burocrática. Sempre me orientei pelos recordes nacionais como uma forma de me motivar e de praticar desporto. Nessas idades, a minha principal motivação era quebrar recordes.

Começou logo a ganhar?

Só comecei a destacar-me dois ou três anos mais tarde. Era extremamente pequeno - desenvolvi-me muito tarde, cresci até aos 21 anos - e fiz resultados de referência a partir dos 10, 11 anos. O que me destacava, se calhar, era o facto de ir contra a ideia de que só os atletas altos, fortes ou rápidos é que ganham. Eu era o oposto, era baixo, magro, não tinha força e competia numa prova em que se saltava para cima. Quebrava todas as estatísticas.

Fazia salto em altura e saltou 1,64 quando media 1,39.

Tinha 11 anos.

Como é que conseguia esses resultados, com muito treino?

Quase não treinava, tinha dois treinos semanais e faltava a um, queria brincar.

Era sorte?

Tinha um talento para o atletismo, nunca foi por muito treino. Foi por uma boa orientação do meu treinador, sem dúvida, que não queimou as etapas de um jovem; por uma boa condução da carreira e muito talento, embora não reunisse as características de referência dos apaixonados pelo desporto. Até aos meus 25, 26 anos sempre fui contra tudo e contra todos.

Não é a primeira vez que o refere. Contra os portugueses?

Não, estou a falar de quem está na área. Desde os meus 14, 15 anos que sempre foi posta em causa a minha evolução no desporto. "Neste ano saltou, para o ano não saltará", pensavam eles que eu treinava muito quando não treinava nada. Só comecei a treinar diariamente aos 20, quando acabei a escolaridade obrigatória. Tinha ganho duas medalhas de ouro no Campeonato de Europa de Juniores, o que me fez pensar: "Se apostar no desporto pode ser que me torne um atleta de elite." E antes de fazer os 20 fiz mínimos para os Jogos Olímpicos. O principal elemento do meu sucesso foi a paixão pelo atletismo, gostava de ver as provas, competir, treinar... Mesmo nas brincadeiras com os meus amigos recriava as situações, fazia o levantamento do peso e do dardo, o salto em comprimento. Atribuo ao meu sucesso à paixão por aquilo que faço e a não dar ouvidos a quem insistia em puxar para baixo.

Até incentivava?

Às vezes. Não digo que não fosse o meu foco dar uma resposta a essas pessoas, mas ninguém consegue fazer o que fiz a tentar calar os outros.

Portugal não tinha tradição nesta modalidade, agora tem o Nelson Évora e a Patrícia Mamona. É para continuar ou são casos isolados?

Se falarmos nas disciplinas técnicas, veio antes a Naide Gomes, que fez resultados espetaculares. Quero acreditar que possam vir novos valores, mas tenho a noção de que nada é feito nesse sentido, vai acontecendo por acaso. Eu gostava que isso pudesse ser alterado por associações, federações, clubes, mas infelizmente não vejo um grande futuro nas disciplinas técnicas.

Não evoluímos desde que começou?

Evoluímos. Não tínhamos formação de treinadores e o mais fácil era treinar atletas de fundo, eram as disciplinas mais básicas. Com a evolução, com a formação dos treinadores, Portugal passou a ser também uma referência nas disciplinas técnicas, e isso mostra que houve uma evolução, mas o que me perguntou é se vai haver continuidade. É nesse sentido que digo que o que vai acontecendo é fruto do acaso. Foi o Carlos Calado, a Naide Gomes, eu, a Patrícia Mamona, mas não posso dizer que há uma estrutura concreta.

Teve convites de universidades americanas que nunca aceitou. Porquê?

É fácil falar, mas, olhando para trás, atingi tudo o que queria em Portugal. Não sabemos se teria atingindo mais ou menos, se me teria perdido. O mais importante para mim era estar ao pé dos que mais amava, a minha família, e dedicar-me ao desporto a 100% com um treinador que era meu amigo e como um pai para mim.

Já tinha trocado o Benfica por outro clube, o FC Porto, por duas épocas.

Sim, como júnior.

Numa situação completamente diferente da atual.

Sim, sem dúvida. Eu e o meu treinador deixámos de treinar juntos depois de 25 anos. Deixando ele de me treinar e continuando a ser treinador do Benfica, eu tinha a total liberdade de fazer o que quisesse e, por muito estranho que possa parecer às pessoas, tudo se reuniu para acontecer o que aconteceu.

João Ganço disse que decidiu deixar de ser seu treinador depois dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro e perante as suas críticas ao plano de treinos.

Sim, foi ele quem resolveu cessar esse vínculo de 25 anos e, com grande tristeza da minha parte, tive de aceitar. Foi um golpe muito duro na minha vida porque achava que tínhamos começado isto juntos e que acabaríamos juntos. Assim não foi e ambos seguimos caminhos diferentes. Muitas promessas foram feitas - ele sempre me disse que no dia que deixasse de me treinar deixaria de ser treinador - e foi tudo ao contrário. Não concretizámos esse objetivo de começar e acabar juntos, a opção foi dele.

Está magoado?

Sem dúvida que estou. Ele não era só o meu treinador, era o meu segundo pai. Como podem imaginar, passei muito mais tempo com o professor João Ganço do que com a minha mãe, com a minha madrasta ou com o meu pai. Quase tudo o que sou hoje, quase todas as minhas grandes memórias foram passadas junto dele e com ele. Nunca se espera que algo do género possa acontecer.

Não falaram sobre a decisão, o Nelson tentou demovê-lo?

Foi feita a conversa.

Fala com ele quando vem a Portugal?

A nossa relação não é a mesma, sem dúvida, mas falamos, respeitamo-nos. É o mais importante, as pessoas respeitarem-se. E já que seguimos caminhos diferentes, há que aceitar. Fica a amizade.

2016 foi um ano difícil?

Posso dizer que foi dos anos mais difíceis da minha carreira.

Mais do que o período em que as lesões o fizeram parar ou comparável?

Comparo. Os anos de 2012 e 2013 foram um massacre físico e mental, mas não há nada pior que um massacre mental. Quem está fora do atletismo pode pensar que o atletismo é só físico; não é. A realidade é que é 95% psicológico e 5 % físico. E quando um atleta é afetado psicologicamente, o físico nada pode fazer.

Quem mais o apoiou?

A minha irmã mais nova [Dorothé Évora], que está sempre comigo, optou por fazer esta mudança comigo e veio para Espanha. Foi a pessoa mais importante a dar-me apoio em toda esta grande crise que tive após os Jogos Olímpicos, mas que se resolveu.

Mas ela continua no Benfica.

Sim, é atleta do Benfica [ri-se].

Como é a sua vida em Espanha?

Ótima, ninguém me conhece. Em 90 % do meu dia posso ir comprar batatas e sentir que a pessoa foi simpática porque me vê como um ser humano e não como a pessoa que atingiu o que atingiu. É das coisas que mais prazer me dão, isso e ter paz. Em Guadalajara não se passa nada como dizem os espanhóis, é ideal para os atletas, longe da confusão, estamos a 200% no treino, temos mais tempo para o trabalho invisível.

Em que consiste o trabalho invisível?

É o trabalho que cada um dos atletas tem de fazer perante as suas limitações, o que tem de desenvolver para se tornar tão bom ou melhor do que os outros. Temos um trabalho de base, que é com os nossos treinadores, e depois temos o trabalho invisível, que é muito mais importante e muito mais efetivo para o sucesso de um atleta. Fui campeão olímpico com 17:67, o meu adversário fez 17:63, é uma diferença de quatro centímetros e posso garantir que 20 cm ou 30 cm são do trabalho invisível.

Tem um psicólogo, um treinador mental, digamos assim?

O meu treinador é uma pessoa muito preocupada com o trabalho invisível, com as questões mentais. O melhor psicólogo de toda a minha carreira era o meu antigo treinador. Quando ele deixou de ser o meu psicólogo, os resultados viram-se, foram por água abaixo. Atualmente, o meu psicólogo, sem dúvida, é o meu treinador.

Portanto, o treinador é a sua grande estrutura de apoio, a todos os níveis?

É. E, agora, por o Ivan ter sido atleta, acabamos por ter uma linguagem comum. Conhecemos o movimento, conhecemos as reações ao treino, sabemos como o corpo responde perante as situações. Só treinamos há nove meses e parece que é há dois, três anos.

Onde se vê daqui a 20 anos?

Não sei, espero ser pai de três filhos, ter uma mulher maravilhosa. Ser uma pessoa bastante feliz por ter construído uma família espetacular e sentir que tenho o respeito dos portugueses. Sem dúvida que estarei a fazer algo que me fará feliz, essa é a minha essência, não consigo fazer nada por frete.

E já há mãe para essa família?

Não, não [ri-se].

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