O que têm em comum Miguel Reale Júnior, o ex-ministro de Fernando Henrique Cardoso que redigiu o pedido de impeachment de Dilma Rousseff, e Marina Silva, a ambientalista três vezes candidata à Presidência da República? Ambos disseram em entrevistas recentes ao DN que a deposição de Jair Bolsonaro se deveria fazer, não apenas por razões políticas, mas por causas médicas..Não são os únicos: três organismos que representam o funcionalismo público, entre os quais a Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal, e um grupo de juristas, a Associação de Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania, também já protocolaram junto do Ministério Público pedidos de "interdição" do presidente..Mas Bolsonaro é mesmo um caso clínico? O mote foi lançado por uma carta de um leitor ao jornal Folha de S. Paulo enviada nesta semana. "Arrisco o diagnóstico de paranoia (núcleos psicóticos bem desenvolvidos), com delírio e ciúme, perseguição e grandeza. Mas verifico que, além disso, os seus núcleos psicopáticos bem desenvolvidos são caracterizados pelo seu desprezo pela vida, pela verdade, pela ciência, pela democracia, pelo meio ambiente, pelos indígenas, pela segurança da população, etc. Enfim, trata-se de um paranoico e sociopata", escreveu Paulo Werneck, que se identificou como médico e psicanalista..O DN desafiou então dois psicanalistas a fazerem um retrato psicológico de Jair Bolsonaro, tendo em conta o comportamento da figura pública e não, claro, na qualidade de paciente, advertem ambos..Para Christian Dunker, professor titular da Universidade de São Paulo, vencedor do Prémio Jabuti para o melhor livro em psicologia e psicanálise em 2012 e colunista de publicações especializadas, "uma pessoa pode exercer um cargo público tendo alguma afeção mental, não há problema nenhum, desde que sob medicação, o problema do presidente é que ele aparenta sintomas mal tratados".."A respeito dos pedidos de interdição eu diria que o governo já está a impor-se uma autointerdição, um autoisolamento, uma autoquarentena", continua. "Faz lembrar uma figura da literatura brasileira, o Simão Bacamarte de O Alienista, de Machado de Assis, que, num primeiro momento, põe toda a gente num manicómio, porque todos temos um ou outro desvio, mas, no momento seguinte, apercebe-se de que o louco talvez seja ele e interna-se sozinho nesse manicómio, que é para onde marcha este governo errático.".Segundo Mario Corso, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e escritor, "ele psicose não tem, louco não é, mas tem perversões, tem traços de psicopatia, notados no gozo com que ele diz que devia ter morrido mais gente na ditadura, que mataria o Fernando Henrique Cardoso, e no desrespeito que ele tem pela autoridade no sentido em que se autoriza a dizer qualquer coisa".."Bolsonaro tem, por outro lado, traços de paranoia, a paranoia é boa na política mas numa dose razoável, ele só vê inimigos, à exceção da família, que é a sua pátria, de resto briga com adversários, briga com o governo, briga com o próprio partido, mas quem tem mais medo de ser roubado é o ladrão, por isso ele tem isso dentro dele, não confia porque não é confiável", acrescenta Corso.."Inimigos sempre há em política, é certo, mas ele produz tantos que nos faz perguntar se não há uma paranoia ali", corrobora Dunker..O psicanalista pega na questão da negação da covid-19 para exemplificar. "A criação de inimigos obedece a uma dualização, eu e você. Isso não compreende a existência de um terceiro, seja esse terceiro a justiça, os media, os outros países do mundo, a ciência ou a natureza. Ora o vírus é um terceiro vindo da natureza e tem de ser negado porque atrapalha essa visão dual."."Por outro lado, todo o inimigo, segundo a lógica dual do presidente, tem de ter uma face, seja ela petista [relativo ao PT], vermelha, esquerdista, e o vírus não tem face, é invisível, não é identificável, daí ele negá-lo. E usa argumentações desconexas, como por exemplo quando disse na reunião ministerial divulgada recentemente que "devemos usar fuzis contra a covid-19", o que ele quer dizer com isso, que devemos disparar contra a capa de gordura do vírus?"."Mas o negacionismo é característica deste governo, porque tanto o presidente como os ministros da Educação e das Relações Exteriores, por exemplo, se baseiam num filósofo negacionista, Olavo de Carvalho [o pensador brasileiro radicado nos Estados Unidos considerado o guru da nova direita brasileira]..O idiota.Mário Corso atribui-lhe ainda traços de narcisismo. "O narciso, em psicanálise, é o mendigo, no sentido em que se está lixando para a imagem que o outro tem dele, e ele tem isso porque desdenha da imagem internacional que tem, leio jornais de todos os países, a imagem dele é péssima, e ele não se importa."."Por outro lado", continua o psicanalista, "vejo-o como idiota, no sentido radical, do grego, ele é despreparado, tosco, ele olha para a ciência como olha para a política, ele não tem a mais vaga ideia do que é ciência, não deve jamais ter lido um livro sobre ciência, a visão dele é tão limitada que transforma tudo num Fla-Flu [expressão brasileira que simboliza polarização].".Dunker encontra pontos em comum "com os tiranos de impérios longínquos". "Desde logo na paranoia, na criação de inimigos exteriores e dentro do seu próprio campo, com medo de traições, é aquilo que filósofos antigos, como La Boétie, Montaigne ou Montesquieu chamaram de "tirano solitário", que se cerca de "tiranetes", o que é muito visível neste governo."."Tem também em comum com esses tiranos longínquos a cólera, não tanto a raiva ou o ódio, mas a cólera, característica própria de quem acha que tem mais poder do que realmente tem."."Os tiranos antigos precisam de criar novos inimigos e gerar novos escravos e o que Bolsonaro está criando é uma democracia para poucos, uma democracia em que aqueles que dependem do Estado sejam deixados à própria sorte, sejam deixados para morrer, o que no fundo é uma limpeza étnica, claro que não como em Auschwitz ou Treblinka, mas recusando saneamento básico, água, apoio.".Para Corso, "o presidente Bolsonaro também é sádico". "Não só por elogiar a tortura mas também pela forma como vai fritando [desgastando publicamente] os seus ministros da Saúde, parece que ele tem prazer em vê-los sendo fritados na praça pública,".A mania por Trump.Dunker sublinha que os regimes acabam sempre por se tornar aquilo que visavam combater. "Ora Bolsonaro elegeu-se em torno da ideia da luta contra a corrupção e, no entanto, a definição de corrupção é colocar interesses privados à frente de fins públicos, logo, na política, a fonte primeira da corrupção é a proteção da família. E ele diz na tal reunião ministerial agora divulgada "não vou deixar f**** a minha família e por isso vou interferir na polícia", que prova isso mesmo, e onde o uso do palavrão, curiosamente, é bem identificativo de que passamos para o registo privado."."Com Bolsonaro, os filhos são poderes, são uma extensão do próprio pai, que se diverte quando eles contrariam a lei, quando eles desviam fundos, quando eles circulam com criminosos, quando eles dizem coisas inadequadas, ele é um típico educador de filhos mimados.".Dunker concorda com Corso quando este diz que "louco ele não é", no sentido em que não apresenta psicoses. "Não estamos a falar necessariamente de psicoses mas de delírios e os delírios paranoicos são baseados na desconfiança e têm como centro a própria pessoa; mas os delírios paranoicos desdobram-se em dois tipos, os de ciúme, em que há a convicção de que estão a ser traídos, muito fáceis de se verificar na governança de Bolsonaro, e os eroticomaníacos, em que há a convicção de que outro, mais poderoso, nos ama, o que se ajusta à paixão de Bolsonaro por Trump que ele acha que é recíproca.".Ainda seguindo o mesmo raciocínio, o psicanalista da Universidade de São Paulo fala em "megalomania", dando como exemplo, mais uma vez a luta contra a pandemia.."Aqueles delírios derivam em megalomania, ou seja, quando a pessoa se considera dotada de poderes extraordinários, além da natureza, bem revelados quando ele diz "o vírus não me pega, eu sou especial, estou acima das leis naturais"."