No primeiro dia em Guadalajara, António Lobo Antunes falou por duas vezes. Uma primeira conferência de imprensa para os jornalistas e uma segunda com direito a interrogatório pela escritora Laura Restrepo. Se na primeira se apresentava cansado da viagem até ao México, na segunda estava fresco que nem uma alface e pronto para seduzir a plateia de várias centenas de pessoas que meia hora antes do início da sessão já tinham esgotado os lugares..Já se tinha percebido que Lobo Antunes era famoso no México, mas o tratamento por Mestre apenas confirmou as suspeitas. Restrepo era a única que o chamava por António, mas não deixava de olhar o escritor como se estivesse em adoração. Só houve uma vez em que foi mais arisca e avisou o escritor que ele não a enganava: "Não vou cair na tua armadilha!".Como não era preciso domar uma plateia que ansiava pela performance do Mestre, mal largaram o braço dado com que chegaram à sala, Restrepo deu início à primeira das questões dos 50 minutos seguintes. A escritora recordou o primeiro antepassado humano, Lucy, que tinha noção de que a morte a esperava no fim do caminho. Uma realidade que Restrepo comparou às personagens da obra de Lobo Antunes, sempre conscientes de que a morte existe e não está longe..Depois, Laura Retrepo questionou-o sobre a singularidade da sua escrita. Mas Lobo Antunes preferiu contar uma história: "Há dez anos uma mulher telefonou-me e disse que eu tinha ganho o Prémio Literário Juan Rulfo. A resposta que lhe dei foi: quanto vale? Só hoje, após estes dez anos, é que me pagaram quando puseram a meu lado Laura Restrepo." Não foi preciso mais nenhum truque sentimental para deixar a entrevistadora e a audiência dominadas e à espera de mais pérolas destas..Lobo Antunes não se fez esquisito e desfiou o colar até o relógio o impedir de gastar mais pérolas. Recordou o tempo em que espreitava pelo vidro de um café as reuniões de escritores como ele desejava ser; de como o avô receava que ele fosse "maricas" só porque queria escrever; de que o receio de se tornar homossexual fazia-o proibir a mãe enfiar-lhe supositórios pelo rabo; de quão difícil é encontrar a voz; de beijar as amigas da mãe numa vertigem de perfumes; do sofrimento para escrever um livro bonito....Foi então que deixou ainda mais embevecida a maior parte da audiência, do género feminino, ao comparar a gestação de um livro à gravidez. Para Lobo Antunes escrever é como estar grávido e construir um romance é como a mãe a sentir uma criança dentro do ventre: "Para os homens, o livro é a única forma de ficar grávido.".Restrepo ainda tentou introduzir uma questão sobre a escrita do entrevistado, o escrever e o sonho, mas Lobo Antunes disparou para os grandes temas do sofrimento pessoal, aqueles que oferecem algumas das experiências que formam um escritor: o som do primeiro tiro na guerra, a morte de um camarada em combate, o modo como estar na guerra lhe mudou a vida. Finaliza esta parte assim: "Devia haver uma consulta de stress pós-traumático da guerra para os escritores.".Em seguida vem um outro trauma, a doença e o medo de morrer sem escrever o que ainda precisa: "Há dez anos quando estive em Guadalajara comecei a deitar sangue do corpo. Quando voltei a Portugal descobri que tinha um cancro.".A morte foi, aliás, um tema recorrente na primeira sessão com os jornalistas, tanto assim que uma profissional falou da sua avançada idade e do que não poderia mais escrever e Lobo Antunes disse que a jornalista poderia ser um zombie e por essa razão não lhe responderia. "Há muita gente que está morta e não sabe", disse antes de fechar o assunto com a deixa "a morte é uma coisa muito pessoal, não falo sobre isso"..Não deixou de elogiar os mexicanos na sua luta pela sobrevivência e numa alusão aos migrantes que estão à porta da fronteira do México com os Estados Unidos chamou "estúpido" a Trump.."Somos todos mexicanos e ninguém pode tratar este povo como lixo", rematou..Qual é a sua relação com os outros autores da delegação ao México foi outra das perguntas: "Faz-me perguntas íntimas. Na próxima tenho de me despir." Lobo Antunes diz, no entanto, que não tem "tempo para relações pessoais" nas feiras a que vai. Continua: "Os portugueses gostam muito de autores que não me dizem nada." Quanto a valores da literatura atual portuguesa, só refere: "Em Portugal não há nenhum Stendhal." Acrescenta: "Conheço mal os escritores portugueses, nem fisicamente, porque não os leio.".Ainda sobre literatura: "Tenho boa memória e recordo-me de páginas inteiras de livros que gosto. Decoro-as e se estou com gente que me chateia calo-me e ponho-me a ler mentalmente." As palmas encerraram ambas as sessões.