Tal como o veado de Père David ou o mutum-do-nordeste, o intelectual público costuma ser tratado como uma espécie extinta no seu habitat natural, e que apenas é possível observar em cativeiro: nas listas anuais de "pensadores mais influentes", ou na subcategoria de artigo jornalístico que questiona se "esta-coisa-que-sempre-foi-assim-estará-a-deixar-de-ser-assim?". "O que aconteceu ao intelectual público?" ou "O fim dos intelectuais?", perguntam esses artigos, em média uma vez por ano. Vários depoimentos são recolhidos, de figuras apresentadas como "intelectuais", mas que recusam, com maior ou menor confiança, a designação. Os tempos estão a mudar, explica um. As coisas não são assim tão simples, explica outro. Uma coisa é certa: talvez - conclui o artigo. Entretanto, a ocasião passa e o intelectual público regressa à sua reserva natural e ao cargo que lhe foi atribuído por inerência: um cargo que, no caso português, implica ficar perto de um telefone, a aguardar tranquilamente um convite da Gulbenkian ou de Fátima Campos Ferreira para "pensar Portugal", ou um telefonema de um jornalista a perguntar "o que aconteceu à ideia de Europa?" ou se "a internet é boa ou má?"..Quando a fauna autóctone de oráculos freelance dispostos a ser periodicamente consultados sobre os Assuntos não chega para responder às necessidades, e é necessário recorrer à importação, Bernard-Henri Lévy continua a ser a melhor escolha possível. Um intermediário atarefado entre o mundo das ideias e o mundo da acção, Lévy percorre incessantemente o planeta à procura de coisas que possam simbolizar outras coisas, de preferência após a sua intervenção directa. Algumas dessas coisas que simbolizam outras coisas nem sempre são as mais óbvias. Numa reportagem publicada na New Yorker em 2015, Jon Lee Anderson perguntou-lhe qual o motivo para ter apoiado tão fervorosamente a intervenção militar na Líbia. A resposta de Lévy foi "porquê? Não sei! Claro que teve que ver com direitos humanos, para impedir um massacre, e blá-blá-blá, mas o mais importante foi..." E depois elucida esse "mais importante" simbolicamente escondido atrás de todo o blá-blá-blá que são massacres ou direitos humanos: o gesto de mostrar "aos muçulmanos" que "um judeu europeu" podia estar "do lado deles". Na actividade de profissionalizar a posse de opiniões importantes, continua a não ter um par à altura. Se há algum Assunto a exigir comentário, Lévy aparece de rompante, em menos tempo do que aquele que é preciso para abotoar correctamente uma camisa. Nada neste mundo consegue intrometer-se no espaço precioso entre os Assuntos e a opinião de BHL - excepto alguns microfones e câmaras de televisão. Vários microfones e câmaras de televisão acompanharam a sua breve passagem por Portugal para promover a obra mais recente, Este Vírus Que Nos Enlouquece. Como o título sugere e o conteúdo confirma, o livro é um valioso contributo para um dos mais vibrantes géneros literários contemporâneos, o género "mas está tudo doido??". As regras internas do género são simples. O opinador selecciona um qualquer fragmento de realidade mediada (uma manchete, uma fotografia, um comentário online) e torna-o representativo de uma irritação mais ampla. O resultado dessa irritação forma depois a substância da sua resposta, que é concluir que "está tudo doido". Até há pouco tempo um género menor, reduzido aos produtores de tweets e posts, o "está tudo doido??" começa finalmente a ser adoptado pelo mainstream..Numa edição especial do programa Todas as Palavras (RTP3), gravado na biblioteca de Carnaxide, Lévy (acompanhado pelo virologista Pedro Simas) discorreu demoradamente sobre as várias formas como a pandemia e o confinamento provaram que "está tudo doido". O espectador instalou-se no sofá, à espera de um medley dos maiores êxitos. Sartre seria citado? (Sim). A "democracia" seria adjectivada com uma única palavra? (Claro). Ameaças genéricas à "liberdade" seriam lamentadas? (Sem dúvida). Sobraria tempo para cantar o seu êxito mais recente, "Criticar as Redes Sociais"? Felizmente! "Quando o confinamento começou, eu tinha acabado de regressar do Bangladesh, e a reportagem que lá fiz foi publicada... e houve uma reacção tão estúpida das chamadas redes sociais! Pessoas a dizer-me "fica em casa! Usa máscara! Porque é que foste ao Bangladesh?" Ou seja, houve uma pandemia de egoísmo." As "pessoas" que disseram essas coisas cruéis e egoístas não foram mencionadas, porque o reino do "está tudo doido" é um pouco como o Paraíso antes de Adão começar a dar nomes aos animais: como o próprio Adão percebeu, dar nomes às coisas só cria confusão, e atrapalha a nobre tarefa de artilhar banalidades e generalizações..A excessiva cobertura mediática da pandemia também mereceu atenção especial. "É como se o resto do mundo tivesse desaparecido", queixou-se. "As notícias durante esse período não tinham outro tema: covid, covid, covid. Pânico, pânico, pânico." É este tipo de reflexões revolucionárias que justificam o prestígio de Lévy, que tem o mérito inegável de ter percebido como funciona a informação televisiva sem sequer acompanhar a cobertura da invasão a Alcochete ou da greve dos combustíveis. Mérito esse que só é reforçado pela solução original que encontrou para combater a excessiva exposição mediática de um tema: escrever um livro sobre o mesmo tema e depois dar oitocentas entrevistas..Nada o irrita tanto, contudo, nada demonstra tão irrefutavelmente que "está tudo doido" como a antropomorfização do vírus: a ideia de que a pandemia foi a "natureza" a falar connosco, ou de que o vírus tem "uma mensagem". "Os vírus são estúpidos", escreve, "não existem para contar histórias aos seres humanos (...) e portanto não há nenhuma lição, nenhum julgamento final que vá resultar de uma pandemia". É talvez a mais compreensível das suas irritações: o hábito de instrumentalizar um evento material para abstrair conclusões pseudofilosóficas. Como exemplo desse tique ridículo, lembremos um texto memorável de 2010, publicado em inglês no Huffington Post, a propósito da erupção do vulcão islandês que cancelou as viagens aéreas na Europa durante algumas semanas: "Quem é mais forte, pergunta o vulcão. Tu? Ou as minhas nuvens de cinza? (...) Quem vai ter a última palavra? O Homem, o autoproclamado mestre da Natureza? Ou eu, o pequeno vulcão (...) que acabou de te lembrar que a Natureza existe e que ninguém tem poder sobre ela? (...) Silêncio, diz o vulcão. Agora sou eu quem fala. Ninguém se mexa. As vossas máquinas voadoras já não são permitidas no céu. (...) É esta a lição do vulcão. Debaixo do vulcão, não a praia, mas a necessária paciência das coisas. Da garganta do vulcão, uma mensagem de humildade, e um apelo à moderação. Abençoado seja o vulcão, e abençoado seja o caos que fomentou.".Estas palavras foram escritas por Bernard-Henri Lévy, e só podemos imaginar o quanto Bernard-Henri Lévy ficaria irritadíssimo com elas, caso as lesse..Mas ao contrário desses exercícios de associação de palavras (que devem ocupar-lhe apenas uma fracção dos seus recursos mentais), a sua irritação com o covid-19 parece fruto de uma convicção enérgica e genuína, que provavelmente já não sentia desde a última vez que persuadiu um presidente a bombardear alguns metros quadrados de Médio Oriente. O que é que irrita tanto BHL na ideia de confinamento? A chave talvez esteja noutro ponto alto da sua obra, um diário semanal que foi escrevendo para o Sunday Times em 2007, e no qual confessa a dada altura: "Vou contar-vos um segredo: eu nunca, nunca como em casa. Sei que é estranho, mas acho a ideia de fazer refeições em casa repugnante. Eu não cozinho, e a minha mulher também não." Eis um ideal que pode unir todas as pessoas de bem. Liberdade, democracia, blá-blá-blá. Mas quando nos tratam como animais e nos obrigam a fazer ovos mexidos para o jantar, é altura de dizer basta, desabotoar a camisa, e partir para a luta..Escreve de acordo com a antiga ortografia
Tal como o veado de Père David ou o mutum-do-nordeste, o intelectual público costuma ser tratado como uma espécie extinta no seu habitat natural, e que apenas é possível observar em cativeiro: nas listas anuais de "pensadores mais influentes", ou na subcategoria de artigo jornalístico que questiona se "esta-coisa-que-sempre-foi-assim-estará-a-deixar-de-ser-assim?". "O que aconteceu ao intelectual público?" ou "O fim dos intelectuais?", perguntam esses artigos, em média uma vez por ano. Vários depoimentos são recolhidos, de figuras apresentadas como "intelectuais", mas que recusam, com maior ou menor confiança, a designação. Os tempos estão a mudar, explica um. As coisas não são assim tão simples, explica outro. Uma coisa é certa: talvez - conclui o artigo. Entretanto, a ocasião passa e o intelectual público regressa à sua reserva natural e ao cargo que lhe foi atribuído por inerência: um cargo que, no caso português, implica ficar perto de um telefone, a aguardar tranquilamente um convite da Gulbenkian ou de Fátima Campos Ferreira para "pensar Portugal", ou um telefonema de um jornalista a perguntar "o que aconteceu à ideia de Europa?" ou se "a internet é boa ou má?"..Quando a fauna autóctone de oráculos freelance dispostos a ser periodicamente consultados sobre os Assuntos não chega para responder às necessidades, e é necessário recorrer à importação, Bernard-Henri Lévy continua a ser a melhor escolha possível. Um intermediário atarefado entre o mundo das ideias e o mundo da acção, Lévy percorre incessantemente o planeta à procura de coisas que possam simbolizar outras coisas, de preferência após a sua intervenção directa. Algumas dessas coisas que simbolizam outras coisas nem sempre são as mais óbvias. Numa reportagem publicada na New Yorker em 2015, Jon Lee Anderson perguntou-lhe qual o motivo para ter apoiado tão fervorosamente a intervenção militar na Líbia. A resposta de Lévy foi "porquê? Não sei! Claro que teve que ver com direitos humanos, para impedir um massacre, e blá-blá-blá, mas o mais importante foi..." E depois elucida esse "mais importante" simbolicamente escondido atrás de todo o blá-blá-blá que são massacres ou direitos humanos: o gesto de mostrar "aos muçulmanos" que "um judeu europeu" podia estar "do lado deles". Na actividade de profissionalizar a posse de opiniões importantes, continua a não ter um par à altura. Se há algum Assunto a exigir comentário, Lévy aparece de rompante, em menos tempo do que aquele que é preciso para abotoar correctamente uma camisa. Nada neste mundo consegue intrometer-se no espaço precioso entre os Assuntos e a opinião de BHL - excepto alguns microfones e câmaras de televisão. Vários microfones e câmaras de televisão acompanharam a sua breve passagem por Portugal para promover a obra mais recente, Este Vírus Que Nos Enlouquece. Como o título sugere e o conteúdo confirma, o livro é um valioso contributo para um dos mais vibrantes géneros literários contemporâneos, o género "mas está tudo doido??". As regras internas do género são simples. O opinador selecciona um qualquer fragmento de realidade mediada (uma manchete, uma fotografia, um comentário online) e torna-o representativo de uma irritação mais ampla. O resultado dessa irritação forma depois a substância da sua resposta, que é concluir que "está tudo doido". Até há pouco tempo um género menor, reduzido aos produtores de tweets e posts, o "está tudo doido??" começa finalmente a ser adoptado pelo mainstream..Numa edição especial do programa Todas as Palavras (RTP3), gravado na biblioteca de Carnaxide, Lévy (acompanhado pelo virologista Pedro Simas) discorreu demoradamente sobre as várias formas como a pandemia e o confinamento provaram que "está tudo doido". O espectador instalou-se no sofá, à espera de um medley dos maiores êxitos. Sartre seria citado? (Sim). A "democracia" seria adjectivada com uma única palavra? (Claro). Ameaças genéricas à "liberdade" seriam lamentadas? (Sem dúvida). Sobraria tempo para cantar o seu êxito mais recente, "Criticar as Redes Sociais"? Felizmente! "Quando o confinamento começou, eu tinha acabado de regressar do Bangladesh, e a reportagem que lá fiz foi publicada... e houve uma reacção tão estúpida das chamadas redes sociais! Pessoas a dizer-me "fica em casa! Usa máscara! Porque é que foste ao Bangladesh?" Ou seja, houve uma pandemia de egoísmo." As "pessoas" que disseram essas coisas cruéis e egoístas não foram mencionadas, porque o reino do "está tudo doido" é um pouco como o Paraíso antes de Adão começar a dar nomes aos animais: como o próprio Adão percebeu, dar nomes às coisas só cria confusão, e atrapalha a nobre tarefa de artilhar banalidades e generalizações..A excessiva cobertura mediática da pandemia também mereceu atenção especial. "É como se o resto do mundo tivesse desaparecido", queixou-se. "As notícias durante esse período não tinham outro tema: covid, covid, covid. Pânico, pânico, pânico." É este tipo de reflexões revolucionárias que justificam o prestígio de Lévy, que tem o mérito inegável de ter percebido como funciona a informação televisiva sem sequer acompanhar a cobertura da invasão a Alcochete ou da greve dos combustíveis. Mérito esse que só é reforçado pela solução original que encontrou para combater a excessiva exposição mediática de um tema: escrever um livro sobre o mesmo tema e depois dar oitocentas entrevistas..Nada o irrita tanto, contudo, nada demonstra tão irrefutavelmente que "está tudo doido" como a antropomorfização do vírus: a ideia de que a pandemia foi a "natureza" a falar connosco, ou de que o vírus tem "uma mensagem". "Os vírus são estúpidos", escreve, "não existem para contar histórias aos seres humanos (...) e portanto não há nenhuma lição, nenhum julgamento final que vá resultar de uma pandemia". É talvez a mais compreensível das suas irritações: o hábito de instrumentalizar um evento material para abstrair conclusões pseudofilosóficas. Como exemplo desse tique ridículo, lembremos um texto memorável de 2010, publicado em inglês no Huffington Post, a propósito da erupção do vulcão islandês que cancelou as viagens aéreas na Europa durante algumas semanas: "Quem é mais forte, pergunta o vulcão. Tu? Ou as minhas nuvens de cinza? (...) Quem vai ter a última palavra? O Homem, o autoproclamado mestre da Natureza? Ou eu, o pequeno vulcão (...) que acabou de te lembrar que a Natureza existe e que ninguém tem poder sobre ela? (...) Silêncio, diz o vulcão. Agora sou eu quem fala. Ninguém se mexa. As vossas máquinas voadoras já não são permitidas no céu. (...) É esta a lição do vulcão. Debaixo do vulcão, não a praia, mas a necessária paciência das coisas. Da garganta do vulcão, uma mensagem de humildade, e um apelo à moderação. Abençoado seja o vulcão, e abençoado seja o caos que fomentou.".Estas palavras foram escritas por Bernard-Henri Lévy, e só podemos imaginar o quanto Bernard-Henri Lévy ficaria irritadíssimo com elas, caso as lesse..Mas ao contrário desses exercícios de associação de palavras (que devem ocupar-lhe apenas uma fracção dos seus recursos mentais), a sua irritação com o covid-19 parece fruto de uma convicção enérgica e genuína, que provavelmente já não sentia desde a última vez que persuadiu um presidente a bombardear alguns metros quadrados de Médio Oriente. O que é que irrita tanto BHL na ideia de confinamento? A chave talvez esteja noutro ponto alto da sua obra, um diário semanal que foi escrevendo para o Sunday Times em 2007, e no qual confessa a dada altura: "Vou contar-vos um segredo: eu nunca, nunca como em casa. Sei que é estranho, mas acho a ideia de fazer refeições em casa repugnante. Eu não cozinho, e a minha mulher também não." Eis um ideal que pode unir todas as pessoas de bem. Liberdade, democracia, blá-blá-blá. Mas quando nos tratam como animais e nos obrigam a fazer ovos mexidos para o jantar, é altura de dizer basta, desabotoar a camisa, e partir para a luta..Escreve de acordo com a antiga ortografia