Pandemia roubou 158 empresas e quatro mil trabalhadores à fileira do calçado
Os últimos dois anos foram exigentes para as empresas, em especial no segmento da moda já que os sucessivos confinamentos, por causa da pandemia, levaram a uma redução substancial do consumo. No calçado, estima-se que tenham sido vendidos menos quatro a cinco mil milhões de pares de sapatos em todo o mundo, em 2020, sendo que, só em Portugal, a quebra no consumo foi de 16 milhões de pares. As pequenas unidades de corte e costura, que dependem da subcontratação das grandes empresas, foram as mais afetadas. No total, e de acordo com os dados da APICCAPS - Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos, a fileira perdeu 158 empresas e 4078 empregos entre 2019 e 2021.
Antes da pandemia, a indústria do calçado contava com 1290 empresas, número que subia para 1704 quando contabilizados os restantes subsetores, como os curtumes, os componentes e os artigos de pele. Dois anos depois, a fileira conta com 1546 empresas, das quais 1159 são produtores de calçado. O emprego teve uma evolução semelhante, passando de 34 797 trabalhadores em 2019 na indústria a 31 267 em 2021. Contabilizando os restantes subsetores, a fileira passou de 44 100 pessoas para, apenas 40 022.
João Maia, diretor-geral da APICCAPS, admite que, durante a pandemia, "fecharam muitas pequenas unidades de corte e costura, e que agora dificilmente irão reabrir". A solução não é só uma, mas uma junção de várias medidas em simultâneo. A importação de gáspeas (a parte superior do calçado, antes de lhe ser aplicada a respetiva sola) ou até de produto acabado de outros países nomeadamente da Índia e, mais recentemente, de Marrocos, tem sido uma das soluções adotadas. E a APICCAPS pretende estudar mercados alternativos de forma séria e aprofundada.
"É algo que terá de ser pensado em termos de futuro. Não digo que esta é a estratégia do setor, porque essa será sempre a de centrar a produção em Portugal, que é onde está o valor competitivo, mas não podemos fechar a porta a nenhum tipo de negócio neste momento", frisa João Maia, em declarações ao DN/Dinheiro Vivo, à margem de mais uma edição da Micam, a maior feira de calçado do mundo, que terminou ontem em Milão.
Questionado sobre quais os mercados com maior potencial para produzir gáspeas ou mesmo sapatos completos que a indústria portuguesa se encarregará de reexportar - é a estratégia seguida crescentemente por países como a Itália, Espanha, Alemanha ou França, que exportam muito mais pares de sapatos do que aqueles que produzem - João Maia admite que não faltam por onde escolher.
"As possibilidades são muitas, é só ver quem é que produz sapatos no mundo mais baratos do que nós e com custos salariais mais baixos. Podem ser os países do Báltico, a que a Itália recorre, ou os do Norte de África. E porque não as colónias portuguesas, que não têm tradição de sapatos, mas com as quais temos relações culturais, ou a América do Sul? Ou mesmo a Indonésia, Bangladesh, Índia ou Vietname, na Ásia. Há muitas alternativas em cima da mesa, temos é de perceber quais são aquelas que nos parecem que têm melhores condições e é isso que vamos estudar a fundo, para depois organizarmos um conjunto de visitas dos nossos empresários a esses mercados, para que possam perceber como é que as coisas se fazem", frisa.
Já a Turquia não convence, embora tenha aumentado a produção em 180% numa década, para 487 milhões de pares de sapatos em 2020. "É um país que já tem custos salariais mais próximos dos nossos e que tem uma apetência muito grande para fazer calçado pronto. E os nossos clientes já lá vão diretamente. Precisamos é de encontrar mercados onde seja difícil aos nossos clientes entrarem e que complementem a nossa produção".
Este é um tema que levanta outra grande preocupação na indústria - a falta de mão-de-obra que, no caso do calçado, se estima em duas a três mil pessoas em falta no imediato. A nível dos recursos humanos a aposta da APICCAPS é a de promover a contratação de imigrantes para as fábricas portuguesas. Uma medida que estava em estudo, mas que acabou por ser colocada em suspenso por causa da guerra na Ucrânia e do número crescente de refugiados deste país a necessitar de ajuda e de trabalho.
"É um tema que está em cima da mesa e ao qual voltaremos um destes dias. Estamos a idealizar um programa para promover essa imigração, tentando perceber quem são as entidades com quem temos de trabalhar e como é que as coisas funcionam. Uma coisa é com a Ucrânia, que não há problemas legais para eles virem, outra coisa é trazer pessoas do Bangladesh, do Brasil ou de outro sítio qualquer. As pessoas não podem simplesmente apanhar um avião e vir para cá trabalhar numa fábrica. Há regras que têm que ser cumpridas, designadamente relativas ao espaço Schengen, e é nisso que estamos a trabalhar", explica o diretor-geral da associação do calçado.
A aposta será em países da América Latina ou de ex-colónias portuguesas, pelas afinidades culturais e de língua. Quanto ao know-how, o centro tecnológico e o centro de formação do calçado encarregar-se-ão disso. Aliás, neste momento, há já um conjunto de jovens de São Tomé e Príncipe que estão em Portugal para fazerem o ensino secundário, ou seja, do 10 ao 12º ano, numa parceria do centro tecnológico com o governo de São Tomé.
Por fim, a digitalização e a aposta crescente na Indústria 4.0 acabará por ajudar a colmatar, também, a falta de mão-de-obra. O setor submeteu dois projetos ao PRR, no valor global de 140 milhões de euros, um dos quais é o FAIST, no âmbito das agendas mobilizadoras, através do qual o setor "procura automatizar um conjunto de soluções e desenvolver novos equipamentos que permitam substituir, do ponto de vista produtivo, algumas das funções mais repetitivas na indústria, reduzindo a quantidade de minutos de pessoas por cada par de sapatos".
A jornalista viajou a convite da APICCAPS
ilidia.pinto@dinheirovivo.pt