Pandemia levou mais de 174 mil empregos entre salários mais baixos
Não há um mercado de trabalho em Portugal. Há dois. E seguem trajetórias completamente opostas. Entre os trabalhadores com salários mais baixos, persistem os efeitos de uma forte destruição de emprego, com muitas dezenas de milhares de postos de trabalho por recuperar. No campo oposto, o que dá acesso a melhores remunerações, há um mercado de emprego florescente, indiferente à pandemia, que continua a somar postos de trabalho.
A constatação é feita a partir dos dados de gestão de remunerações que a Segurança Social começou a publicar neste mês, e que permitem avaliar a evolução do emprego nos diferentes escalões de remuneração-base dos trabalhadores por conta de outrem.
Os números de março, publicados na última semana, mostram que entre quem recebe até 800 euros o nível de emprego manteve-se 7,6% abaixo do período pré-pandemia. Naquele que foi o mês inicial de desconfinamento, 174.503 postos de trabalho permaneciam perdidos, comparando com fevereiro de 2020.
Já entre escalões salariais acima, não se registam perdas. Só crescimento. O emprego entre quem aufere acima de 800 euros sobe 6,1%, mesmo sob o efeito dos meses da pandemia. Em março, havia mais 87.118 postos de trabalho com remunerações declaradas à Segurança Social. Destes, 85% pagavam entre 800 e dois mil euros.
"A metade superior da distribuição salarial é aquela que criou emprego. Na inferior diminuiu o emprego", descreve João Cerejeira, economista do Trabalho e professor na Universidade do Minho. A queda entre quem ganha menos, admite, "é brutal".
Considerando os dados globais de emprego, estes traduzem uma redução mais contida. Há hoje menos 82.152 pessoas com emprego do que no mês anterior à chegada da pandemia. São menos 2%, em termos líquidos, nos dados da Segurança Social.
Mas este número não reflete o efeito de recomposição no emprego, com perdedores e ganhadores da pandemia, na qual a contratação em salários mais altos permite ainda que o volume global de salários pagos no país se mantenha a crescer, em 2%.
"A queda do emprego por classes de rendimento na prática está a refletir os setores das profissões", assinala João Cerejeira. Assim, e tal como têm vindo a apontar dados do INE e do Instituto de Emprego e Formação Profissional, "os setores que estiveram fechados pelas medidas de confinamento e que são os setores com os mais baixos salários - a restauração, algum comércio a retalho também - são os setores que perderam emprego".
Já os setores que "ganharam emprego são aqueles onde a pandemia mais requisitou profissionais". "São a área das tecnologias da informação e comunicação e a área da saúde, que acaba por ser uma área de remuneração pelo menos acima desses 800 euros, e que emprega uma grande percentagem de profissionais licenciados e mais qualificados", refere o economista.
Se, no primeiro caso, a reação das políticas públicas à pandemia trouxe medidas de apoio à manutenção do emprego, como o lay-off simplificado, no segundo a proteção do emprego gozou de um efeito adicional da generalização do teletrabalho nos setores mais facilmente convertíveis a este regime de prestação de trabalho. "Estamos a falar de quadros dirigentes, de técnicos muito especializados, cujas tarefas podem ser realizadas à distância. Tendem a ser profissões mais bem remuneradas".
Mas a dinâmica de criação de emprego nos setores com salários mais elevados já vinha de trás, nalguns casos sendo reforçada pela crise sanitária. Por exemplo, no setor da saúde, "já se vinha a verificar há alguns anos uma expansão muito grande dos serviços no setor privado", com o crescimento do emprego a ser beneficiado ainda pela necessidade de recrutar mais para o setor público devido à crise de saúde pública.
Na educação, também, os dados sugerem que terá havido necessidade de garantir mais profissionais disponíveis numa classe de trabalhadores mais envelhecida e suscetível à covid-19, mas num fenómeno de aumento do emprego que poderá não durar no pós-pandemia.
O setor das tecnologias da informação e comunicação (TIC), por outro lado, já vinha numa tendência de aumento significativo do emprego, algo "que agora foi acelerado", e poderá ter beneficiado das maiores restrições à emigração do último ano. "A pandemia pode ter limitado fenómenos de saída de quadros, o que também permitiu que as empresas portuguesas pudessem crescer, contratando mais técnicos disponíveis para trabalhar", admite Cerejeira.
A existência de dois mercados de trabalho divergentes, reflete o economista, é também "uma tendência que se acentuou na última década", com "um peso cada vez maior dos setores intensivos de conhecimento e das indústrias de tecnologia média ou média-alta no emprego".
A novidade está mais, agora, no que acontece no campo oposto: o do trabalho menos qualificado, e mais mal pago. "Desde a última crise financeira de 2011 até 2019, o emprego tinha crescido muito nos setores na base salarial, em virtude da expansão dos serviços. Agora, vimos uma contração".
Resta saber como será a recuperarão nestes setores onde predominam atividades ligadas ao turismo e ao comércio. Para João Cerejeira, "provavelmente, não vai ser já neste ano que se vai chegar aos níveis que tínhamos em 2019, mas a capacidade instalada existe". "Existe o trabalho, existem os edifícios, os hotéis, os restaurantes. A procura também há de aparecer", prevê.
Já a forte assimetria salarial do mercado de trabalho, com 59% dos trabalhadores por conta de outrem a ganharem abaixo de 800 euros em março, será mais difícil de reverter. "A desigualdade só diminuiu nos últimos anos, mesmo lentamente, por causa da subida do salário mínimo. Mas há um desafio para o governo de saber até que ponto pode subir o salário mínimo num contexto em que o grupo que está a perder emprego é onde o salário mínimo tem expressão maior."
maria.s.caetano@dinheirovivo.pt