Pandemia Covid-19 e populismos de direita
A chegada da pandemia na Europa alimentou mais uma onda de alarmismo acerca do populismo de direita e do seu aproveitamento das crises derivantes. Como habitual, os alertas recorreram às correspondências com a consolidação dos fascismos nos anos conturbados do princípio do Século XX, num exercício comparativo que - como de costume - simplifica e dificulta a compreensão dos eventos contemporâneos.
Contra estas banalizações, destacamos algumas dimensões da relação complexa entre pandemia e populismo, que podem ajudar a uma melhor orientação. Em primeiro lugar, vale a pena sublinhar que o populismo de direita é um fenómeno plurifacetado em termos de identidades políticas e de posições institucionais ocupadas nesta crise pandémica. Por isso, não existe uma resposta unívoca do populismo, mas, sim, respostas diferentes, dependentes, pelo menos, de três factores: a colocação no poder ou na oposição (Donald Trump nos Estados Unidos não é Santiago Abascal na Espanha); a cultura política (o holandês Geert Wilders não é o húngaro Vítor Orbán); o nível de contágio nacional (a Itália não é a Polónia).
As direitas no poder reagiram à pandemia de três maneiras diferentes. Alguns líderes minimizaram, desde o princípio, o impacto da crise sanitária e fugiram às medidas draconianas, como no caso de Jair Bolsonaro no Brasil, Erdogan na Turquia e Joko Widodo na Indonésia. Outros modificaram o facilitismo inicial, perante o crescimento da curva de contágio, como no caso de Donald Trump nos Estados Unidos e de Boris Johnson no Reino Unido. Outros, ainda, responderam prontamente à crise sanitária, como é o caso dos governos de Hungria, Polónia, Israel e Índia.
Os casos polaco e húngaro são particularmente relevantes pelas críticas aos respectivos governantes de aproveitamento autocrático da crise. Estas acusações ainda estão por provar: na Polónia, as eleições presidenciais de 10 de Maio, apontadas como instrumento do partido de governo PIS para manter-se no poder, foram reenviadas em acordo com a oposição; na Hungria, a governação por decreto prevista pela Lei de 2011 sobre gestão das catástrofes está a ser exercida, como previsto, com a supervisão da Corte Constitucional e do Parlamento regularmente em função. Ou seja, nos dois países não houve nenhuma ruptura constitucional à sombra da pandemia.
As direitas na oposição também assumiram posturas diferentes perante a crise. Na Europa do Sul, os partidos populistas Fratelli d"Italia e Lega (Itália), Vox (Espanha) e Chega (Portugal), assumiram uma linha de crítica contundente aos respectivos governos nacionais. Pelo contrário, Marine Le Pen na França, Norbert Hofer na Áustria e Nigel Farage no Reino Unido não hostilizaram demasiado os governos, embora tenham avançado críticas e sugestões. Finalmente, os Democratas Suecos de JimmieÅkesson suportaram abertamente as medidas do governo social-democrata.
No que diz respeito aos efeitos da pandemia no populismo de direita, a resposta está longe de ser unívoca. No governo, alguns líderes consolidaram as respectivas posições (Polónia e Hungria), outros perderam o inicial incremento de popularidade típico dos governantes em tempo de crise (Donald Trump) e outros, ainda, sofreram de imediato uma quebra de confiança do eleitorado (Jair Bolsonaro). Neste caso, a combinação entre dimensão territorial e incidência da crise desempenha um papel relevante: no Brasil, Bolsonaro paga o conflito com os governadores estaduais; nas regiões mais afectadas de Itália - Lombardia e Veneto - os governadores regionais da Lega registam índices de aprovação opostos, determinados pelos desempenhos respectivos e menos pela linha comum de critica ao governo central.
Na oposição, as variações, positivas ou negativas, na popularidade dos governos reflectiram-se de forma diferente nos populismos de direita. Na península ibérica, o Chega e o Vox não parecem ressentir de forma significativa das dinâmicas opostas dos governos socialistas. Na Itália, a inflexão de Matteo Salvini da Lega é capitalizada pelo concorrente de direita Fratelli d"Italia.Na Alemanha, o crescimento da CDU de Ângela Merkel incide muito na descida da AfD nas sondagens.
É possível delinear algum cenário futuro? Com alguma prudência, podemos salientar alguns factores da pandemia, desfavoráveis e favoráveis para a agenda da direita populista. Entre os desfavoráveis, o imediatismo do discurso por chavões e por soluções fáceis será afectado pela complexidade das respostas às crises económica e de sanitária de longa duração. Neste sentido, a nova centralidade dos técnicos (economistas e cientistas) representará um desafio difícil para os populismos de direita, mais habituados a esgrimir com a comunicação social. Este efeito será menor onde os governos populistas exercem um controlo maior sobre a imprensa (Polónia, Hungria, Rússia). O discurso populista ressentirá também da contradição aparente entre a necessidade de maior integração no concerto internacional para enfrentar a crise económica e a obrigação dos governantes mainstream em assumir medidas restritivas em termos de fronteiras para controle sanitário.
Entre os factores favoráveis, os populismos de direita serão avantajados pela valorização dos conceitos de fronteira, de comunidade nacional, de imigração selectivae qualificada, pelo desempenho questionável dos organismos internacionais (UE e OMS, por enquanto) e pela necessidade de defesa do tecido empresarial nacional enfraquecido, perante as cobiças dos capitais estrangeiros. Neste último ponto, adquire particular relevância o conceito de Estado: os populismos de direita adeptos da centralidade do Estado, como o francês, estarão numa posição mais confortável face aos que sempre apregoaram o Estado mínimo, como os ibéricos e face aos que combinaram o intervencionismo económico com o desmantelamento dos sistemas de saúde, como o húngaro.
Em síntese, o efeito da pandemia covid-19 nos populismos europeus de direita está longe de ser uma história já escrita.
riccardo.marchi@iscte-iul.pt
NOTA: Este texto representa uma síntese da intervenção do autor no webinar "Europa em tempos de COVID-19", organizado pelo Centro de Estudos Internacionais do Iscte e pelo Instituto da Defesa Nacional, em parceria com o Diário de Notícias. A próxima sessão decorrerá no dia 21 de maio, às 18h, e será subordinada ao tema "Espaço Euroasiático em tempos de COVID-19", com participação de Vasco Rato (IDN), Luís Tomé (UAL), Licínia Simão (CES-UCoimbra) e moderação de Cátia Miriam Costa (CEI-Iscte). O evento é aberto ao público em geral mas a participação requer inscrição prévia em https://bit.ly/3bBl60t