Paixões abrasadas pelo sol meridional
Chama-se Laboratorio '600 e é um projeto idealizado pelo músico e investigador italiano Franco Pavan. No sábado passado, estiveram na Igreja de São João Baptista, em Moura (Baixo Alentejo), apresentando um repertório hors norme, constituído por cantos e peças instrumentais das três regiões do extremo sul italiano: Apúlia, Calábria e a ilha da Sicília. "Fora de norma", por se tratar de absolutas raridades (os próprios chamam-lhe "repertório esquecido") e por resistirem a uma catalogação ou classificação: antigo/moderno, erudito/popular, profano/sacro, escrito/improvisado. Uma celebração da contaminação, das porosidades, afinal.
Ao lado de Pavan (tocando tiorba ou chitarra battente), estiveram Katerina Ghannudi, na harpa barroca e Ilaria Fantin, no arquialaúde - um trio que era a suavidade feita música, mas não menos eloquente. Cantando, o tenor (e ator e mimo e dançarino) Pino De Vittorio, uma das grandes referências na recuperação e inclusão no universo da prática musical historicamente informada destes repertórios do Mezzogiorno, e que com este grupo já gravou (em 2013) o CD Siciliane.
E da Sicília era, de facto, o grosso do programa: cantos profanos (a maior parte), onde o amor-paixão amiúde convoca ou prenuncia a morte; cantos sacros (de festividades populares, como aquela Passioni di Nostru Signuri) de intensa devoção mística; cantos de embalar (...donne dei marinai di Trapani), onde a ternura não exclui a ausência ou a iminência tremente da perda... Culto dos extremos, reflexo, afinal, de um modus vivendi também ele extremado. Contrastes patentes ainda nas peças instrumentais apresentadas, onde ao modalismo original foram plasmados (quase como tropos) cadenze ou inflexões tonais mais tardias.
Mas houve também espaço para uma curiosa incursão no universo madrigalesco da seconda prattica: se Amore celato foi a mais comedida ou refinada, já Donna incostante e Amore sdegnato se deixaram contaminar pelo escárnio-maldizer (aquela) e pela dor pungente do abandono (esta).
Como houve, por outro lado, espaço para auscultar a herança árabe (dominaram a Sicília durante mais de dois séculos) numa peça instrumental em que o material escalar e os melismas/vibrações cromáticos/microtonais remetiam para essa cultura.
Presenças de "outros" que foram uma constante nestas regiões ao longo dos tempos, como se ouviu nas inflexões melódicas da Arietta grica calabresa. Também da Calábria, a Matajola de largos intervalos no ostinato, teatralidade concentrada na expressão do canto, uma visão noturna a fazer lembrar um blues.
Animando as "hostes", a Apúlia, com Sona a battenti (aparentada à tarantella e lembrando uma canção de desafio) e a Tarantella di Sannicandro, estrófica, com voz e castagnette, ambas as peças procedentes do Gargano.
Pino De Vittorio é um espetáculo dentro do espetáculo: ele canta, ele mima, ele arma poses de dança; ele toca chitarra battente, castagnette napoletane ou tamburello a mano(sem soalhas)! Um histrião moderno que explodiria de vez na tarantella napoletana (do século XVIII) com que brindou o público extra-programa, de nome Cicerenella: uma amada qualquer, um nome que não é nome, antes um poli-fonema que serve à expressividade álacre da cultura popular partenopeia.