Paióis de Tancos: chefe do Exército puniu militares com que base legal?
Os comandantes militares têm as mãos atadas para aplicar punições disciplinares de execução imediata, pois o direito de recurso dos visados tem efeitos suspensivos por imposição constitucional. Daí ser duvidoso que o chefe do Exército tivesse base legal para castigar militares com penas de repreensão, após os inquéritos internos relativos ao furto de material de guerra em Tancos.
Esta posição foi assumida esta semana num seminário sobre Direito Militar, organizado pela Academia Militar do Exército e onde, com os casos judiciais de Tancos e dos Comandos - ou o relacionado com a promoção do major-general do Exército Tiago Vasconcelos - em pano de fundo, ficou claro que o universo castrense já não funciona à margem das regras do Estado de direito (ver texto ao lado).
A propósito de Tancos, o chefe do Estado-Maior do Exército (CEME) perguntou "se a legislação existente é suficiente para fazer face às exigências impostas pela sociedade dos dias de hoje". Reconhecendo que "as críticas [...] podem eventualmente descredibilizar indevidamente a instituição", o general Rovisco Duarte garantiu que o que o ramo fez "foi cumprir as regras".
Recorde-se que o CEME puniu um militar com pena de repreensão agravada por não ter feito a ronda aos paióis no dia do furto, outro com pena de repreensão simples por não ter preenchido corretamente o registo do material existente - sendo que nenhum deles recorreu da decisão, segundo informou o ramo.
Em causa está a norma do Re-gulamento de Disciplina Militar (RDM) que impõe aplicação imediata das sanções de repreensão, mesmo com o chamado "recurso hierárquico necessário" (obrigatório, por só depois poder recorrer--se aos tribunais). Com o Códi-go do Procedimento Administrativo (CPA) de 2015, essa solução deixou de ser aceite como exceção.
Luís Fábrica, um dos oradores e professor da Católica, disse ao DN que "existem bons argumentos a favor" da inconstitucionalidade dessa norma do RDM. A Constituição, "segundo o Tribunal Constitucional e o Supremo Tribunal Administrativo, impõe que o recurso hierárquico necessário seja sempre acompanhado da suspensão de efeitos do ato recorrido", lembrou ao DN.
Daí resulta que, admitindo-se um elevado número daquelas sanções aplicadas desde 2015 nas Forças Armadas, "as consequências práticas podem ser de monta", alertou Luís Fábrica, pois "um eventual provimento do recurso vai limpar a folha disciplinar mas a repreensão já foi efetivamente aplicada".
Com o CEME a afirmar que "a aplicação da disciplina e o cumprimento das normas em vigor devem ser executadas de forma célere" para "salvaguardar o interesse coletivo" das Forças Armadas, e Luís Fábrica a considerar "evidente que a repreensão perde sentido se não for aplicada imediatamente", o professor da Católica deixou a pergunta: "Como resolver isto?"
Com várias Forças Nacionais Destacadas no estrangeiro, Luís Fábrica aconselhou o poder político a "adaptar o RDM ao CPA novo e às exigências" dessas missões militares de paz para evitar que os comandantes tenham a sua ação de comando fragilizada, vendo-se obrigados a optar pela alternativa de enviar os subordinados para Lisboa.
Isso ficou implícito na intervenção do comandante operacional do Exército, tenente-general Guerra Pereira: para esses comandantes, em missões que duram seis meses, a interpretação normativa das leis "é muito complexa", o sistema processual "é muito complexo [e] não têm recursos jurídicos de apoio".
O tenente-general António Mascarenhas deixou outra questão: "Como é que um comandante militar pode exercer a sua ação disciplinar?" O antigo juiz militar no Supremo Tribunal de Justiça sublinhou que "não se pode aplicar ou estudar ou legislar na justiça militar sem ter em conta" os ramos do Direito Penal (no caso do Código de Justiça Militar) e do Direito Administrativo (RDM ) - pois, alertou, "não há autonomia plena do direito militar". Em tom pedagógico, defendeu a revisão do Código de Justiça Militar e do RDM para "separar na totalidade" os campos criminal e disciplinar, sugerindo ainda a criação de um "quadro permanente de juristas" militares e a eliminação, no RDM, das penas de privação da liberdade.
Três casos de decisões militares que a justiça civil vai analisar
Os tribunais militares acabaram há duas décadas mas a instituição castrense pareceu continuar a agir e a decidir, no plano da justiça e da disciplina, como se as regras do Estado de direito apenas vigorassem fora dos quartéis.
Casos recentes ajudam a ter essa perceção, dois com forte impacto mediático e em que o poder político - com Marcelo Rebelo de Sousa como comandante supremo das Forças Armadas - teve de dar respostas aos cidadãos: a morte de recrutas nos Comandos (2016), o furto de material de guerra nos paióis de Tancos e a legalidade da promoção do major-general Tiago Vasconcelos (ambos em 2017).
Em Tancos, aplicaram-se penas que geraram escândalo por serem consideradas demasiado leves; nos Comandos, após anos de arquivamento pelo Exército de processos relativos à morte (ou lesões graves e permanentes) de recrutas, pela primeira vez serão julgados instrutores e médicos; a promoção de Tiago Vasconcelos a tenente-general, com alterações retroativas de datas em ordens de serviço para evitar a sua passagem à reserva - que a PGR iria chumbar - e que o Ministério Público está a investigar.