Ou há moralidade ou comem todos

Crónica sobre assuntos de justiça. "Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo"
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Já jubilado (reformado), o juiz-conselheiro voltou ao serviço para fazer inspeções judiciais aos seus colegas mais novos. Depois de o seu regresso ter sido votado pelo Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o juiz, perdão, o conselheiro entregou um pedido para utilizar o seu automóvel nas deslocações. Autorizado. Até aqui tudo bem. O caso começou a complicar-se quando, a 15 de janeiro de 1999, deu entrada um novo pedido, no qual o conselheiro jubilado pedia autorização para "utilizar automóvel de aluguer para e desde a estação de caminhos-de-ferro ou de camionagem, no início e no termo de cada deslocação". Isto seria mais ou menos assim: o juiz, perdão, o conselheiro, ia de carro alugado até, por exemplo, Santa Apolónia, onde apanhava um comboio para se deslocar aos tribunais de Coimbra e Braga (onde corriam algumas das suas inspeções). E no regresso a viatura estava à sua espera.

O Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF) autorizou o método, mas "apenas no quadro legal atinente às deslocações que conferem direito a ajudas de custo". Posteriormente, os serviços questionaram se a nova forma de deslocação do juiz tinha "ou não reflexos na forma como o processamento" tinha vindo a ser efetuado. No meio deste elevado debate burocrático, o então presidente do CSTAF interveio, clarificando a sua anterior autorização, dizendo que a mesma deveria valer "apenas para as localidades carecidas de meios de transporte coletivo de serviço público, o que manifestamente não é o caso de Lisboa, Porto ou Coimbra".

Caldo entornado, foi o que foi. O conselheiro inspetor afiou a caneta mas, numa primeira fase, conteve a fúria, optando pelo tradicional salamaleque judicial: "Perdoe-me ou não, eu entendo que V. Ex.ª se precipitou ao decidir como decidiu e não tomou as cautelas, os termos e o tempo adequados para uma conveniente reflexão." Uma boa hermenêutica concluiria que por detrás da letra do conselheiro estava um espírito furioso com a decisão, que, no fundo, o que queria dizer era "este gajo quer...". "Isto para dizer que o simples respeito e civilidade deveriam impor que comigo se tivesse dignado previamente a falar sobre o assunto com franqueza, lealdade e abertura na procura de solução legal adequada", concluiu o conselheiro na primeira missiva.

O conselheiro presidente manteve a sua decisão, o que levou o juiz-conselheiro a dirigir-lhe mais um ofício. E, desta vez, os salamaleques foram atirados para as malvas. "Cheguei onde cheguei, sem nunca ter pedido os favores de ninguém. E sempre com recusa obstinada, mesmo para amigos bem colocados, a solicitações que feriam a minha consciência de retidão, justiça, isenção e legalidade."

E já que o juiz-conselheiro não pode utilizar o carro, nada como lembrar ao juiz-conselheiro-presidente um pequeno episódio: "V. Ex.ª. programou uma visita oficial ao Tribunal Tributário do Porto no dia 19-2-99, sexta-feira de manhã. O Tribunal dista cerca de 10 minutos a pé em caminho bom e plano, desde a sua casa no Porto. Nesta costuma V. Ex.ª vir passar normalmente, o seu fim de semana a partir de quinta-feira à tardinha. Desta vez deslocou-se em carro do Estado, desde Lisboa, com condutor a ganhar ajudas de custo - e não sei se V. Ex.ª as recebeu também." E assim se justifica o título da crónica desta semana: ou há moralidade ou comem todos.

Até porque, como referiu o juiz-conselheiro, o "comportamento de V. Ex.ª no antecedente, se o tem como ilegal, não abona muito a seu favor, sobretudo em vista das suas atuais certezas tão absolutas". Pois... "Ou antes praticou vários atos ilegais conscientemente nos diversos boletins itinerários de ajudas de custo e transportes. Ou os praticou por ignorância ou negligência sem se preocupar em se informar do seu enquadramento na lei, desinteressando-se do concreto destino dos dinheiros públicos."

A liberdade de expressão e de criação literária é sempre muito enaltecida até ao momento em que nos toca. O juiz-conselheiro-presidente não gostou e foi aberto um processo disciplinar ao juiz-conselheiro, o qual, segundo a acusação, apenas "quis atingir a pessoa do Exmo. Senhor Presidente e a faltar-lhe ao respeito tanto como pessoa, como em razão do cargo que exerce". Ou seja, é como se fosse um dupla incriminação: faltar ao respeito à pessoa (humana) e ao cargo. Se há coisa que os tribunais valorizam muito é o respeito (às vezes, o salazarento "respeitinho), por isso o juiz-conselheiro foi condenado em sede de processo disciplinar. E de nada lhe valeu o recurso para o Supremo Tribunal Administrativo. Em 2003, esta instância confirmou a pena de dez dias de multa, condenando ainda o juiz-conselheiro a 350 euros de custas (processo 0327/02). E tudo por causa de um carro.

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