Os velhos que todos somos ou seremos. Eis como os tratamos
"Ai que lindo, que boa papinha!", diz a enfermeira. Não para uma criança, mas para um velho. Há uma suspensão do tempo e vemos a cumplicidade lúcida dele com outro como ele, esse que depois haveria de fingir ter urinado. Leva, claro, uma reprimenda da enfermeira. Como se de uma criança se tratasse. Estamos no ATM - Atelier de Tempos Mortos, a nova peça da Companhia do Chapitô, que estreia hoje naquela sala de onde, antes de entrar e depois de sair, se vê o rio Tejo.
Aquilo que começou por ser uma encenação da peça O Rei está a morrer, de Eugène Ionesco, transformou-se numa criação coletiva dirigida por Cláudia Nóvoa e José Carlos Garcia. "Isto fez-nos mudar a ideia sobre a velhice", diz ele. O ensaio terminou e sentamo-nos, com os atores Jorge Cruz, Ramon de Los Santos, Susana Nunes e Tiago Viegas, nas quatro caixas de madeira que ocupam o cenário no espetáculo. "De repente eu vou ter com a minha mãe e tenho que repensar isto tudo, como é que eu estou com ela", continua o encenador.
Tão depressa trágica como cómica e, as mais das vezes, ambas em simultâneo, a peça faz-nos rir perante cenas como a da filha que visita o pai e, num monólogo acelerado, sem nunca olhar para ele, fala do carro novo, de como "lá em casa" deixaram o glúten; não acerta na doença do pai (confunde-a com a que tinha a mãe), e tem de se despachar porque o carro está mal parado e ela precisa que ele assine aqueles papéis. Quantas vezes fizemos aquilo?
Cada um dos velhos foi criado pelo ator que lhe dá vida. Susana, que, como o espanhol Ramon, trabalha pela primeira vez com a companhia que neste ano comemora o seu 21.º aniversário, explica: "A nossa experiência de velhice vem da observação. Procurámos todos trazer para aqui o que conhecemos, os nossos avós, os nossos pais, pessoas que observamos na rua (fizemos muito isso). É um bocadinho uma coleção de gestos, de corpos, de formas, de expressões. E, às tantas, também povoado por essa ideia: como é que cada um lida ou se adapta a esta ideia de que a vida esta a chegar ao final."
No caso daqueles quatro velhos, há entre eles uma aliança. "São colegas, como nós que estamos aqui. Não deixam de ser camaradas...", lança Jorge. Cláudia Nóvoa, antiga bailarina do extinto Ballet Gulbenkian e coreógrafa, que tem vindo a trabalhar em teatro - e desde o ano passado com o Chapitô -, chama-lhe "solidariedade". Como aquela que transparece no telefonema fictício - e comovente - que três fingem para aquele a quem a família nunca liga.
Depois de Lisboa, a companhia fará como sempre faz: arruma as malas e leva o espetáculo para o estrangeiro.