Peniche, pavilhão B, 1.º e 2.º pisos, 8 horas da manhã do dia 25 de Abril de 1974. Nele estavam os presos políticos ligados às organizações maoistas, à LUAR e os oriundos das então colónias africanas, como os angolanos Joaquim Pinto de Andrade e Henrique Guerra, estes libertados meses antes por cumprimento da pena..Alguns de nós demos conta de que o aparelho de rádio fora silenciado. "Uma avaria, já está a ser reparada", explicou o guarda de serviço ao pavilhão..Anunciava-se um dia enevoado e de grande tensão. Decidíramos iniciar uma greve de fome de solidariedade com os presos de Caxias que se encontravam em luta contra as condições prisionais. A 'avaria' prolongou-se por toda a manhã, bem como a nossa reclamação de explicações..Cerca das 11 horas, um segundo episódio confirmaria as suspeitas de que a direção prisional mentia: a RTP transmitia marchas militares. As justificações do carcereiro sucediam-se cada vez mais hesitantes, nervosas e contraditórias. Receámos um golpe militar do Kaúlza de Arriaga..Às 13 horas, os nossos familiares foram impedidos de nos visitar. Do diretor da prisão, instado a receber-nos, não havia notícias. Entretanto, a GNR rendia-se na muralha e calava as baionetas. Preparámo-nos para o pior..Dentro do pavilhão, isolado e coagido por alguns de nós, o chefe dos guardas acabou por confessar: houvera em Lisboa um levantamento militar, vitorioso por todo o país, no seguimento do qual fora deposto o Governo de Marcelo Caetano e detidos os seus responsáveis. Atribuía a direção do golpe militar a um tal MFA e ao general Spínola..Tudo se transformou em segundos. De imediato, erguemos barricadas para resistir à eventual tentativa de nos utilizarem como reféns, rompendo o diálogo com as forças prisionais. Nenhuma transigência. Libertação imediata, era tudo..Estivemos barricados até às 16 horas do dia 26, momento em que, finalmente, foram abertas as portas da prisão e pudemos receber o MFA. Os abraços efusivos gelaram com uma primeira comunicação dos oficiais da Marinha, delegados da Junta de Salvação Nacional. Por ordem expressa de Spínola, não seriam libertados os presos políticos ligados à FAP, por causa da execução de um informador da PIDE que os denunciara - Francisco Martins Rodrigues, João Pulido Valente e Rui d'Espiney - e de um outro ligado à LUAR, Filipe Viegas Aleixo, envolvido no assalto ao paquete Santa Maria, na noite de 21 para 22 de janeiro de 1961.."Ou saímos todos ou não sai ninguém!", foi a nossa imediata e unânime decisão. E assim aconteceu, entre as 2 e as 3 horas da madrugada do dia 27 de abril - só possível graças às "démarches" do advogado Macaísta Malheiros junto dos oficiais da Marinha delegados da Junta de Salvação Nacional, destacados para a libertação dos presos políticos de Peniche, nomeadamente o comandante Machado dos Santos..Antes, já tinham saído os presos ligados ao PCP, encarcerados no 3.º piso do pavilhão A, juntamente com Viegas Aleixo. Nem um minuto de sobressalto lhes retardou a saída, deixando para trás o companheiro da LUAR. Pior: 45 anos passados destes acontecimentos, continuam a fazer tábua rasa da parte menos simpática de como foi, de facto, no dia 27 de abril de 1974, a libertação dos presos políticos que se encontravam detidos no Forte de Peniche. O habitual da narrativa de sempre: eles e apenas eles na luta contra o fascismo e a guerra colonial..Nada de novo, de resto, neste deliberado 'apagamento' na conhecida versão oficial do PCP dos 'últimos dias de Peniche'. Não aconteceu o mesmo com a rasura do nome de Francisco Martins Rodrigues, 'desaparecido' há muito da célebre evasão coletiva do Forte Peniche, em 3 de janeiro de 1960? Era ele ainda membro do Comité Central do PCP, veio depois o dissídio sino-soviético e, para sempre, o desterro memorialista do PCP.....Da nossa parte, quando todos, sem exceção, pudemos finalmente sair em liberdade, tínhamos à nossa espera o povo de Peniche, envolvendo-nos num abraço inesquecível..Carlos Saraiva da Costa é ex-preso político, libertado do Forte de Peniche em 27 de abril de 1974