Os tempos do Ministério Público

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Há mais de quinze anos que defendo uma profunda reforma do Ministério Público. Sei que represento uma posição muito minoritária na sociedade portuguesa. Por exemplo, em 2011 e 2015, nenhum dos partidos com representação parlamentar sugeriu no seu programa eleitoral qualquer mudança profunda do Ministério Público. Como, aliás, nunca fez parte do programa de qualquer dos governos das últimas décadas. A única discussão nesta matéria apareceu na abortada revisão constitucional de 2011, quando o PSD sugeriu um papel mais interveniente do Presidente da República na escolha do procurador-geral da República (PGR), enquanto a esquerda defendia o atual desenho institucional. Mas não só esse foi um debate inconsequente como apenas resumiu a velha máxima - se o Presidente é meu, deve ser ele a escolher o PGR; se o governo é meu, deve ser ele a escolher o PGR. Nada que possa fazer a mais pequena diferença exceto na habitual divisão dos despojos entre os partidos políticos.

Outra discussão surgiu há dez anos. Uma ideia do PS (pela mão do então ministro Alberto Costa), rapidamente acarinhada pelo PSD no trágico e patético Pacto da Justiça - a Lei-Quadro da Política Criminal. Elogiada amplamente pelos especialistas e pelas colunas de opinião como solução para os problemas já então graves do Ministério Público, escrevi na altura que essa lei era "pura retórica para que tudo fique na mesma" e "conversa da treta para fingir mudanças que não existem no Ministério Público". Isto em dezembro de 2005. Percebe-se hoje facilmente quem tinha razão, apesar dos ardentes proponentes da Lei n.º 17/2006 como a reforma profunda de que o país necessitava ainda não assumirem a responsabilidade de mais uma década perdida.

Tenho argumentado que um processo que envolve um ex-primeiro-ministro suspeito de corrupção é muito complicado em qualquer país. Os aspetos políticos e os efeitos na opinião pública não podem ser ignorados. Parece-me, pois, errado conceber qualquer reforma do Ministério Público ou do processo penal com base no caso Sócrates. Seria uma precipitação errada. Algo semelhante aconteceu com o caso Casa Pia e a consequente reforma processual de 2007 (Lei n.º 48/2007) foi um desastre, como hoje sabemos.

Contudo, podemos listar as duas restrições com que lidamos atualmente em termos de política criminal em Portugal. Primeiro, o Estado não tem condições orçamentais para disponibilizar mais recursos ao Ministério Público. As estatísticas europeias indicam que, em valores relativos, já gastamos mais, temos mais procuradores e mais tribunais do que a média. Segundo, temos vários consensos entre os especialistas da política criminal, sejam penalistas sejam autoridades judiciárias (o leitor poderá depreender que me encontro fora destes consensos, mas reconheço-os após tantos anos de interação nesta área). O princípio da legalidade é sacrossanto e qualquer veleidade de introduzir o princípio da oportunidade, mesmo nas versões mitigadas como em Itália, França ou Espanha, seria um retrocesso civilizacional (a versão norte-americana ou inglesa seria já mesmo inimaginável). A delação premiada é uma imoralidade imprópria de um Estado de direito (apesar de existir em inúmeras jurisdições com um Estado de direito democrático bem mais funcional do que o nosso). A hierarquização do Ministério Público acompanhada de um sistema de prestação de contas exogâmico (em detrimento da avaliação endogâmica de um modelo antiquado e desajustado baseado num Conselho Superior do Ministério Público), seguindo outros exemplos europeus, seria uma violação inaceitável da independência do Ministério Público.

Do casamento destas duas restrições, incapacidade orçamental de disponibilizar mais recursos e os consensos jurídicos que rejeitam qualquer aproximação aos modelos europeus, resulta o triste espetáculo a que assistimos no caso Sócrates. Também partilho da opinião de que é escandaloso que o Ministério Público não cumpra os prazos; também tenho muita dificuldade em aceitar que os prazos sejam meramente indicativos e possam ser violados sistematicamente; também acho inaceitável que este processo se arraste até ao final da década entre investigação, acusação e julgamento. Tudo isto é injusto para os arguidos, é péssimo para a qualidade da nossa democracia e pode criar justificadas apreensões na opinião pública. Mas sejamos frontais: sem dinheiro e com estes consensos jurídicos, não há outra versão possível para estes tristes espetáculos do Ministério Público. Por isso estamos onde estamos há vinte anos. E assim continuaremos.

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