"The buck stops here". A antiquada expressão idiomática é uma das preferidas de Joe Biden e o atual inquilino da Casa Branca fez questão de a repetir na segunda-feira ao vir publicamente reiterar a sua convicção de que tomou a atitude certa ao mandar retirar as tropas americanas do Afeganistão nesta altura..Ficar-lhe-ia bem este total assumir de responsabilidades, se fosse mesmo para levar a sério. Sim, o único responsável pelo que está a acontecer no Afeganistão tem um nome: Joe Biden. Não é a CIA, o seu diretor ou os agentes em Langley ou no terreno; não é o Pentágono, nem muito menos os soldados em Cabul ou estacionados no teatro de guerra. É o homem que, sozinho -- e, segundo os dados mais recentes conhecidos, sem ouvir verdadeiramente os seus conselheiros ("being his own advisor" foi a expressão usada por uma fonte da ABC) decidiu esta retirada militar neste prazo totalmente arbitrário, de forma a que ocorresse antes do 11 de Setembro..O resultado está à vista. Em especial nas imagens das mães a passar os filhos bebés sobre o arame farpado aos soldados, tentando dar-lhes um melhor futuro do que aquele que elas têm pela frente..Esta sexta-feira, o Presidente americano voltou a falar à nação sobre a retirada. Foi, para ser simpático, fraco. Sendo mais rigoroso: foi redundante. Esta é uma das operações "mais difíceis da história"? Culpa de quem, senhor Presidente? Não pode garantir o "resultado final" da operação de retirada? Pois....Com isto, a administração americana ficou colocada entre a espada de reconhecer que tinha conhecimento de que algo deste género poderia acontecer, mas não quis saber, porque o Presidente já tinha metido na cabeça que era para vir embora custasse o que custasse; e a parede de admitir a total incompetência dos serviços secretos, que nunca teriam previsto a capacidade de os talibãs tomarem o país em 11 dias..Optou pela segunda..Já aqui escrevi que me custa a acreditar tal ser verdade. Nos últimos dias, ainda por cima, mais alguns elementos vieram a público..Escreve a revista online Vice que estes "Talibãs 2.0", como lhes chamam, não são de todo adversos a utilizar novas tecnologias, muito pelo contrário. E que usaram as redes sociais -- nomeadamente o WhatsApp -- de uma forma que se revelou instrumental para permitir o seu rápido avanço pelo país fora..Essencialmente, uns dias antes de desatarem aos tiros, começam a disparar mensagens com promessas de que vai correr tudo bem se não houver resistência. Sendo que isto ocorria, semanas ou meses antes, preparado com muita propaganda pelos mesmos meios. E muitas vezes os territórios simplesmente rendiam-se..Nesta parte, Biden teve toda a razão, no discurso de segunda-feira: os americanos não podem "dar aos afegãos a vontade de combater" que eles não têm..Mas os serviços secretos no local não sabiam disso?.Ou já nem sequer havia serviços secretos no terreno? A CIA confia exclusivamente já de tal forma nos satélites e análises de dados digitais que retirou o elemento humano do solo?!.(Se é esse o caso, então façam de vez um outsourcing para o MI6 ou a Mossad, por favor...).Mas mesmo os serviços de "escuta" digitais deveriam ter intercetado essas comunicações dos talibãs. Não instalaram o Pegasus em nenhum talibã?.Aliás, ainda esta sexta-feira, o general David Patraeus, agora retirado, mas que durante 40 anos serviu no Pentágono e que, ainda sob a administração Obama geriu a situação no Afeganistão, em entrevista à revista The New Yorker, defendia as tropas afegãs e culpabilizava a pressa da retirada dos militares americanos..Além disso, afirmava mesmo, desmentindo o seu Presidente quando, na segunda-feira, este dizia que os afegãos não tinham "vontade de combater os talibãs":.Traduzindo: "Por isso, dizer que os afegãos não lutarão pelo seu país precisa de um asterisco. E deve dizer-se que os afegãos lutarão pelo seu país se eles se sentirem confiantes de que alguém os apoia e lhes fornece reforços e munições, mantimentos, medicamentos, evacuação médica de emergência e, mais importante de tudo, que lhes fornecerá o apoio aéreo para os retirar de um combate feroz. Tenha em mente, mais uma vez, que os talibãs podem aglomerar-se em qualquer lugar, no que eram postos isolados.".De um momento para o outro, literalmente, este apoio desapareceu. E o moral das tropas também, diz Patraeus. Ninguém consegue lutar assim..Mas não, ninguém estava à espera, querem convencer-nos. Porque estamos todos parvos!.Mas já que de facto a carapuça nos serve a todos, os talibãs apressam-se a dar conferências de imprensa e entrevistas (a mulheres e tudo!) garantindo que estão diferentes..Para no dia seguinte a ONU revelar que há buscas porta a porta à procura de colaboracionistas....E relatos de que no meio de todo o material que os EUA deixaram para trás, além de armamento, ficaram bases de dados digitais e sistemas biométricos que os tais "Talibãs 2.0", se já não sabem usar facilmente, poderão aprender a manusear.......Até porque há no Irão, na Rússia e na China quem saiba usá-las. E os serviços secretos destes, que se saiba, ainda vão funcionando..Parabéns sr. Biden. Foi tudo uma excelente opção. Mas pelo menos a sua consciência está tranquila. A imagem do seu filho a ir combater (e morrer) numa guerra que não é a sua não volta a acontecer..O que, obviamente, não é maneira de dirigir um país, uma empresa, ou sequer uma agremiação da esquina. Mas isso agora não interessa nada..Leia-se os muitos editoriais ex-culpatórios ao Presidente e logo se percebe que aquele é um argumento recorrente para justificar a decisão. De facto, uma imprensa amiga não tem preço e esta assim continuará, que mais não seja por memória do que foi Trump, pelo menos até ao primeiro grande massacre em Cabul.