'Special one' é de novo 'number one'. Os segredos do renascer de Mourinho em Inglaterra
Está de volta o velho José Mourinho? Esta é a pergunta do momento em Inglaterra, depois de o Tottenham ter assumido a liderança da Premier League na sequência de uma vitória por 2-0 frente ao Manchester City, de Pep Guardiola, treinador que pode muito bem ser designado de eterno rival do treinador português. O primeiro lugar dos Spurs era algo que não acontecia desde agosto de 2014. Após nove jornadas, contabiliza seis vitórias e apenas uma derrota, precisamente no primeiro jogo, em casa, com o Everton. Mais do que isso, o Tottenham tem agora um conjunto compacto e competitivo, um pouco à imagem daquilo que foram as grandes equipas montadas por aquele que os ingleses chamam de Special One.
É por isso que a pergunta faz sentido. O treinador português parece estar a viver uma segunda vida no futebol, depois de um período em que parecia ter entrado em declínio, que coincidiu com o regresso ao Chelsea, onde em 2014-15 venceu o último título de campeão da sua carreira. Já lá vão mais de cinco anos... Seguiu-se o Manchester United, onde ergueu o último troféu, a Liga Europa em 2017. Já lá vão mais de três anos, o período mais longo da carreira sem festejar uma conquista.
Quando aos 56 anos deu o "sim" ao Tottenham para iniciar uma nova etapa na carreira, muitos julgaram tratar-se de um clube confortável para que Mourinho pudesse voltar ao ativo, sem a pressão de ter de ganhar. Afinal, desde 1961 que os Spurs não são campeões ingleses e, apesar de ter sido finalista vencido da Champions em 2019, nos últimos 20 anos só ganhou uma Taça da Liga. A época passada parecia demonstrar que os londrinos, acabados de inaugurar um dos mais modernos estádios do mundo, não tinham argumentos para lutar com os melhores.
Só que a natureza do treinador português é de nunca se render. Começou então a trabalhar na recomposição de um plantel que tinha sido fustigado com lesões para que pudesse impor o seu estilo e a sua marca registada. As sementes foram lançadas nos primeiros meses no clube, quando procurou impor uma cultura de vitória em jogadores que, na sua esmagadora maioria, não sabiam o que era conquistar títulos. A prova disso está no documentário da Amazon All or Nothing, que mostra os bastidores do clube durante a temporada.
A conversa que manteve com Harry Kane, a principal estrela da equipa, mostra bem a forma como Mourinho procurou entrar na cabeça dos jogadores. O avançado inglês absorveu cada palavra do técnico, que começou por comparar a sua importância no Tottenham com aquela que Messi e Cristiano Ronaldo têm nos seus clubes. "Podemos ganhar por causa de ti", disse-lhe, enchendo o ego do avançado e, ao mesmo tempo, conferindo-lhe responsabilidade e confiança.
Aliás, esses elogios tiveram depois correspondência publicamente, pois ainda recentemente o treinador português deixou claro que Kane é "um jogador fantástico, quando o puzzle à volta dele é perfeito". Uma declaração em que procurou igualmente aglutinar o resto da equipa em torno do seu capitão.
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Estas pequenas injeções de confiança misturaram-se com os elevados níveis de exigência, conforme é demonstrado nas suas intervenções nas reuniões com os jogadores. Talvez influenciado pelo documentário, mas sobretudo pelos resultados, Tim Sherwood, antigo jogador e treinador do Tottenham, tenha dito que "Mourinho fez uma lavagem cerebral ao plantel, fazendo-os acreditar que é possível ganhar troféus". O médio Moussa Sissoko admitiu isso nesta semana: "É bom ter um treinador que sabe como vencer."
E a verdade é que, após nove jornadas, o Tottenham tem a melhor defesa (nove golos sofridos) e o segundo melhor ataque (21 golos marcados) da Premier League. E para isso muito contribuiu a chegada de três novos jogadores: os laterais Matt Doherty (ex-Wolverhampton) e Sergio Reguilón (ex-Real Madrid) e o médio Pierre Hojberg (ex-Southampton), que se têm revelado fundamentais numa equipa que tem Harry Kane como o centro de toda a ação, como provam os sete golos e nove assistências que leva no campeonato.
O próprio Mourinho tem procurado demonstrar que a importância de Kane não se mede pelos golos que marca, considerando que "ele talvez seja responsável pelos adeptos gostarem de futebol". "Talvez venha a mudar a forma como as pessoas olham para os avançados, porque a tendência é medir-se a qualidade deles pelos golos que marcam", disse o técnico, numa forma de enaltecer a importância do internacional inglês no seu novo Tottenham. Afinal, é ele que faz mexer o ataque da equipa, ora aparecendo na área para finalizar ora abrindo caminho para os velocistas das alas aproveitarem. E aí o sul-coreano Son Heung-min tem-se destacado na esquerda, contabilizando já nove golos e duas assistências, enquanto na direita Mourinho tem rodado entre Lucas Moura (o mais utilizado), Gareth Bale e Steven Bergwijn.
A consistência defensiva tem sido um grande trunfo do Tottenham, que beneficia de um trio de meio-campo muito dinâmico e combativo, com o dinamarquês Hojberg como verdadeiro pronto-socorro da defesa pela forma como faz as compensações, libertando os franceses Moussa Sissoko e Tanguy Ndombélé para a pressão ao adversário, impondo os seus atributos físicos. Este trio deixa o guarda-redes Hugo Lloris e os centrais Toby Alderweireld e Eric Dier bem mais protegidos do que na época transata.
A forma de jogar dos Spurs foi bem resumida nesta semana por Eric Dier quando disse que "hoje em dia os adversários não gostam de defrontar o Tottenham",an explicando porquê: "Somos mais físicos, agressivos, determinados, temos uma boa atitude, e o treinador é o grande responsável por isso, pois pede-nos mais coisas e é implacável connosco."
Além da mentalidade e de uma nova forma de jogar, Mourinho conta agora com várias outras opções que podem fazer face a lesões ou que podem mudar o curso de um jogo. É que além de Bale e Bergwijn tem ainda o guarda-redes Joe Hart; os defesas Sèrge Aurier, Davinson Sánchez e Ben Davies; os médios Harry Winks, Gedson Fernandes e Giovanni Lo Celso; e os avançados Erik Lamela e Carlos Vinícius. Isto além de Dele Alli, jogador que terá sido a maior vítima da nova lei de Mourinho, que no documentário All or Nothing chega a chamar o médio ofensivo de "preguiçoso", ainda que em tom de brincadeira. Mas a verdade é que, nesta época, Alli jogou apenas 66 minutos na Premier League, muito pouco para quem foi um dos indiscutíveis dos Spurs nos últimos anos.
Neste domingo (16.30), em Londres, frente ao Chelsea, o Tottenham tem um novo teste à liderança e à sua mentalidade vencedora. Se ganhar, José Mourinho sabe que mais vozes a elogiar a sua equipa e a considerá-la uma séria candidata ao título vão juntar-se à de Pep Guardiola, que, ainda antes de ser derrotado no último sábado, fez questão de destacar o "grande trabalho" do técnico português. "Obviamente que são candidatos, sobretudo quando têm um treinador que sabe retirar o melhor das equipas", disse o catalão.
Mourinho tem tentado aliviar a pressão para não atrapalhar uma equipa à procura de adquirir a sua própria cultura de vitória e já avisou que "o Tottenham não luta pelo título", preferindo ser mais conservador: "Lutamos apenas por ganhar todos os jogos. Não quero saber da classificação nem dos adversários. Somos um processo em desenvolvimento."
José Mourinho visita neste domingo Stamford Bridge para defrontar o Chelsea, onde não tem sido feliz como visitante, pois apenas ali venceu um jogo. Curiosamente, foi a contar para os oitavos-de-final da Liga dos Campeões, em março de 2010, quando treinava o Inter Milão e ganhou por 1-0 graças a um golo de Samuel Eto"o, garantindo o apuramento numa época em que conquistaria a Champions.
De resto, para as provas inglesas, o melhor que conseguiu foi um empate 2-2 ao serviço do Manchester United para a Premier League em outubro de 2018. Pelos red devils, sofreu três derrotas, das quais duas por 1-0 e uma por 4-0.
Na época passada, já ao serviço do Tottenham, voltou a sair derrotado, mas por 2-1, com Giroud e Marcos Alonso a marcarem para os blues e Rüdiger a fazer na própria baliza o golo dos Spurs. Este foi igualmente o primeiro jogo frente ao seu antigo jogador, Frank Lampard, que se mantém como técnico do Chelsea.