Os óculos da marginalidade
Madalena Saavedra é arquiteta. Tem um portefólio invejável de habitação em cidades de grande dimensão, mas nunca precisou de acompanhar uma obra. Nem tão pouco as suas casas são de argamassa. São casas que não racham, não caem e nem são habitadas, mas também não existem.
Madalena, já ganhou uma dezena de prémios de arquitetura, mas nunca fez um projeto à medida de um cliente a sério. Daqueles chatos que até desenhitos com ideias levam! Ela simplesmente tem uma capacidade criadora tal, que mais de metade do Metaverso "habitável" é assinado por ela.
É o sonho de qualquer um! Ter uma casa e nunca mais ter de a pintar, reparar ou até mesmo ter de calçar as galochas e ir cortar a relva, aparar os arbustos e aspirar a piscina. Madalena, tem um curso de arquitetura daqueles certificados e tudo e, depois de 5 anos a carregar maquetas e pastas A1 no banco de trás do 742, ninguém diria que era numa Adriadne, a arquiteta de Inception (Christopher Nolan, 2010), que se iria transformar.
Madalena é casada com o Quico. O Quico, Francisco na sua vida física, é ilustrador, mas foi na sua vida digital que encontrou a fama. É o criador da série de NFT mais famosa, mais vendida e mais cara que se pode encontrar no Metaverso. Uma série satírica de cartoons políticos de nome Ste(e/a)l. Quico conseguiu encontrar um nicho de mercado onde a inteligência artificial ainda não lhe conseguiu roubar clientes.
Com os seus chorudos ordenados digitais, este casal de criativos, lá conseguiu comprar uma espetacular réplica do Jetson One (Hanna-Barbera, 1962) no qual se passeiam por cima da cidade e vêm lá do topo das nuvens a belíssima malha urbana projetada por Madalena.
Mas é hora de tirar os óculos e ir fazer o jantar. As comidas glamorosas não existem naquela casa. Naquela casa vive-se à margem do Metaverso, vive-se uma vida seca e sem interesse. Vive-se sem diálogo e sem prazeres mundanos.
Comem à pressa e voltam para as suas vidas acessórias. Sentam-se nas suas cadeiras ergonómicas, colocam os aparelhos na cara e entram na sua Tomorrowland (Brad Bird, 2015) com a esperança de que as decisões que tomam no Metaverso tenham impacto nas suas realidades mundanas.
Mas não. Lá vão vivendo uma vida marginal, toda ela dentro de casa. Dentro de uma casa daquelas a sério, feita de tijolo e argamassa, que tem tudo, mas está vazia.
Designer e diretor do IADE - Faculdade de Design, Tecnologia e Comunicação da Universidade Europeia