Tem sido no jazz que Kiko Pereira, 51 anos, tem feito grande parte de uma carreira também partilhada pelo ensino, como professor de canto e técnica vocal, chegando em tempos a ser considerado pelo crítico José Duarte "a melhor voz masculina de Portugal". A prova disso está em álbuns como Raw, o aclamado trabalho de estreia a solo, de 2003, ou o não menos elogiado L"USA, editado em 2012 enquanto Kiko & the Jazz Refugees, a mesma denominação que agora recupera, mas com uma outra banda, para navegar nas águas turvas do blues. "A questão do nome só surgiu quando começámos realmente a compor. Decidimos então recuperar os Refugees para uma nova vida, porque tem a ver com a filosofia do grupo anterior, que não era bem jazz, apesar de também o ser. E como este disco é mais azulado, substituímos o jazz pelos blues", explica ao DN..A seu lado, nesta nova reencarnação dos Refugees, tem alguns "velhos companheiros de estrada", todos eles músicos reconhecidos no panorama de jazz e blues nacional, como António Mão de Ferro (guitarras), Jorge Filipe Santos (teclados), Carl Minnemann (baixo) e João Cunha (bateria). E apesar de todas as composições serem do próprio Kiko Pereira, os ambientes musicais, que tanto vão do blues mais tradicional ao rock and roll clássico, com passagens pela soul e, claro, pelo jazz, foi desenhado em conjunto. "Comecei sozinho, mas a maturação dos temas foi feita com a banda e até de uma forma muito consensual, porque somos cinco pessoas muito parecidas, tanto a nível pessoal como musical", adianta Kiko, sorrindo ao ouvir a expressão rock and roll: "Rock? Sim, até porque quando era um rapaz novo, ali entre o final dos anos 70 e os 80, ouvia muito os Led Zeppelin, os Black Sabbath ou os Aerosmith antigos, tudo bandas de rock com uma grande influência blues. E à medida que fui crescendo musicalmente também não deixei de gostar, pelo que é natural que essa influência venha agora ao de cima." Na verdade, sublinha, gosta de música, venha ela de onde vier, e, portanto, enquanto músico a sua "suprema felicidade é poder fazer música sem constrangimentos", tal como acontece neste álbum..Mais do que um disco de blues clássico, Threadbare assume-se assim como "uma encruzilhada" que é bem o espelho da atualidade deste género musical, outrora ponto de partida de grande parte das músicas ditas populares (jazz, rock, hip hop) e onde hoje quase todas elas se voltam a encontrar. Ou posto de outra forma, é quase como se o delta do Mississippi se fundisse com a foz do Douro, com tudo o que permeio por aí se pode encontrar. Com produção de Mário Barreiros e Kiko Pereira, é álbum na tradição da grande música da América, o país onde Kiko nasceu (em Newark) e que nunca mais o largou ao longo de uma carreira já com mais de 30 anos, a solo ou em projetos como a Orquestra de Jazz de Matosinhos, a Orquestra de Jazz do Algarve, a Lisbon Swingers Big Band ou a Orquestra de Jazz de Jorge Costa Pinto, entre outros..As próprias letras revelam essa atenção ao mundo de hoje, contrariando, até, alguns clichés do próprio género. "Este disco tem claramente duas partes, uma pré-pandémica e outra pós-pandemia, em que temas como Giver, Say It ou Deep remetem para este período", esclarece. E há ainda outros, que embora não se relacionem diretamente com a pandemia, "surgem da contemplação do mundo em confinamento", como é o caso de Fake News, "uma reflexão", nas palavras do próprio autor, "sobre a influência das redes sociais nestes tempos tão estranhos" ou o hino ao inconformismo de Too Lazy to be a Nice Guy. "Trata-se de uma visão da realidade, através do olhar de uns cotas, que fazem essa leitura com base no seu trajeto de vida e de músicos", salienta Kiko, pai de "dois filhos adolescentes que vivem esta mesma realidade mas encaram-na e compreendem-na de uma maneira diferente"..DestaquedestaqueMais do que um disco de blues clássico, Threadbare assume-se como "uma encruzilhada" que é bem o espelho da atualidade deste género musical, outrora ponto de partida de grande parte das músicas ditas populares (jazz, rock, hip hop) e onde hoje quase todas elas se voltam a encontrar..Uma lição igualmente aprendida enquanto professor de jovens aspirantes a músicos, atividade que lhe abriu também as portas da televisão, desempenhando essas mesmas funções em programas como Operação Triunfo e The Voice Portugal. "Como professor tenho um imperativo de ordem profissional que é o dever de transmitir conhecimento. E tenho outro, de ordem ética, de lhes passar a experiência adquirida, numa relação quase de mestre e aprendiz, como também tive no passado, no sentido de os ajudar a filtrar todo esse conhecimento adquirido", refere, alertando para a "torrente de informação" com que é inundado quem está hoje a começar na música. "No fundo tento dar-lhes uma visão mais estruturada, fazê-los olhar para a música como uma caminhada e não um momento, porque infelizmente, em Portugal, ainda há um défice de massa crítica, o que não ajuda a tornar o meio mais competitivo, mas de uma forma saudável. No fado e no jazz, por exemplo, isso não acontece tanto, porque trata-se de um público mais conhecedor e, portanto, mais exigente, mas no denominado pop-rock ainda é tudo muito nivelado por baixo.".Não é o caso de Threadbare, em que nada foi deixado ao acaso, nem os convidados, entre os quais se destaca a presença, no tema que abre o disco, If This is the End of Me, do músico inglês BJ Cole, colaborador de gente tão ilustre como Elton John, Sting, Beck, Bjork ou Depeche Mode e um dos melhores tocadores mundiais de slide guitar. "Foi o Mão de Ferro a sugerir uma slide guitar e lembrei-me logo do BJ Cole. Fui ao Google, procurei a página dele, enviei uma mensagem a convidá-lo e, para grande surpresa nossa, aceitou. Respondeu apenas que gostou muito do tema e duas semanas depois já tinha gravado a parte dele. Foi uma participação que trouxe uma grande espiritualidade à canção", conta. Outro nome que salta aos ouvidos é o de Marta Ren, com quem Kiko faz um dueto em Sittin" and Wishin". "É maravilhosa, uma força da natureza. Esta música foi já escrita a pensar na Marta e ela fez exatamente o que se pretendia, apoderou-se da canção e tornou-a dela.".dnot@dn.pt